História pessoal verídica que tem mais ou menos a ver com o tema dessa resenha. Uns 12, 13 anos atrás, eu trabalhava como “faz tudo” num bufê. Atendíamos em festas de aniversário, casamentos, esse tipo de coisa. Além de garçom, eu ajudava na decoração, na limpeza, na preparação da comida, por aí vai.
Certa vez, teve um aniversário de sei lá quantos anos de casamento de um casal. Eles tinham grana, um casarão com jardim bem grande onde seria a festa. Quando chegamos lá, havia algo curioso no local: várias dessas esculturas brancas ao estilo classicista grego, que descobrimos que representavam pessoas da família. Comentei com um dos seguranças ali que tinha achado interessante aquela decoração pra festa. Porém, ele me corrigiu, dizendo que aquelas estátuas sempre ficavam por ali.
Sempre achei interessante como aquelas pessoas com mais grana recorriam a uma estética classicista para se representarem aos outros. Um pouco por, na cabeça de algumas pessoas, parecer haver uma ideia de que esse tipo de arte é “superior” a outras, um pouco também por esculturas classicistas gregas terem um apelo extremamente erótico, o que adiciona uma outra camada à conversa. As estátuas no jardim mostravam pessoas seminuas musculosas, curvilíneas, com rostos que lembravam os dos membros daquela família, cujos físicos passavam longe disso.
Há um ponto de encontro entre o poder (aqui, aquisitivo, já que a família tinha dinheiro) e o erotismo no jeito belo como pessoas com poder querem se mostrar que rende discussões interessantes. E é aqui onde entra O Estranho Conto da Ilha Panorama (Panorama Island), mangá de horror do autor Suehiro Maruo, originalmente publicado em 2007, mas lançado no Brasil no ano passado pela editora Pipoca e Nanquim. E essa é uma adaptação do conto de mesmo nome escrito por Edogawa Ranpo. Nele, acompanhamos a história de alguém que fez de tudo para adquirir poder, e quando o conseguiu, o usou para, justamente, se representar da maneira mais bela — e erótica — possível.
Esse alguém, no caso, é Hirosuke Hitomi. Ele é um escritor fracassado, que não consegue engatar as histórias sobre sociedades utópicas paradisíacas que gostaria de escrever. Certo dia, ele recebe a notícia da morte de um antigo amigo, Genzaburo Komoda, um herdeiro da família mais rica de sua terra natal. O ponto é: Hitomi e Komoda sempre foram muito parecidos, sósias. Nessa, Hitomi decide tirar proveito da situação, forjar sua própria morte, e “renascer” como Komoda, assumindo a vida do falecido amigo.
O que Hitomi faz ao se apropriar da vida de Komoda? Decide investir a fortuna do falecido na construção de um parque temático nababesco em uma ilha. Nele, são montados vários ambientes idílicos, luxuriantes e explicitamente eróticos, baseados em diferentes movimentos artísticos, mas com uma preferência pelo classicismo. Nessa ilha, os visitantes vão para se inebriarem através do luxo, da bebida, dos prazeres sexuais, tudo com o desprendimento disso ser realizado num local “separado” da realidade. Afinal, é uma ilha de fantasias.
Obviamente, conseguir tal feito demanda um esforço de Hitomi, que precisa driblar a família e os sócios de Komoda, fazer com que eles comprem sua ideia. E isso vai de maneiras sórdidas, que conquistam essas opiniões através dos prazeres, sejam dessas pessoas, ou do próprio Hitomi.
O Estranho Conto da Ilha Panorama é uma obra que faz parte do movimento eroguro. Esse é um gênero artístico japonês que data da década de 1930, cujo termo que lhe dá nome é uma contração entre as palavras da língua inglesa “erotic” e “grotesque” (“erótico” e “grotesco”) adaptada para a pronúncia nipônica. Nele, a graça está em explorar o quanto de prazer pode ser tirado de dentro do errado, do gore. Isso em termos morais, mas também físicos, estéticos, visuais. Tanto Edogawa Ranpo, quanto Suehiro Maruo, são expoentes do eroguro em suas épocas.
Então, muitos pontos do gênero são explorados por aqui através de sua narrativa gráfica. Mas o mais interessante é que isso é feito de um jeito perturbadoramente sutil.
O modo como os personagens são desenhados, com rostos apáticos, em reações evidenciadas a partir de pequenas mudanças de expressões, deixa tudo com um aspecto artificial esquisito e deslumbrante. Não há tantos momentos onde o prazer sexual se soma com o gore físico. Isso é mais relacionado ao que há dentro dos personagens, com eles atingindo o ápice através de suas intenções escusas, com aquilo que eles sabem que está errado, mas ainda assim se deliciam no moralmente inaceitável.
Há uma cena que descreve essa ideia em perfeição: Hitomi está se relacionando com uma prostituta, e seu maior gozo ocorre quando ele traça o plano de tomar o lugar do antigo amigo e atingir seus desejos mais profundos nesse ato.
O mangá traz algumas das cenas esteticamente mais bonitas que li em tempos. Todo o segmento onde o protagonista apresenta pela primeira vez a ilha à sua esposa usurpada é impecável. Eles passam por cada um dos cenários, e são sempre imensos, opulentes, recheados de detalhes, de narrativas, história, conceitos, onde o hedonismo é o principal e nos conquistar através dos olhos parece ser o ideal.
Para além de tudo, o grotesco está no desfecho amoral da história. Não espere resoluções que punam os que fazem o mal, os que cometem erros. Os mocinhos não vencem aqui. Não há mensagens sobre como andar na linha é o melhor jeito de viver a vida. Pelo contrário.
Nessa, O Estranho Conto da Ilha Panorama é uma obra espetacular, que impressiona em absolutamente todos os sentidos. No visual, na temática, no roteiro. E em como o autor usa a própria narrativa gráfica para nos dragar para dentro daquele mundo libidinoso de puro prazer destacado das amarras morais da sociedade.
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O Rio Grande do Sul segue em situação de calamidade pública, passando por uma das piores tragédias da história do estado, após fortes chuvas e enchentes que permanecem em algumas regiões. O governo estadual reativou o PIX do “SOS Rio Grande do Sul”, criado ano passado, quando o estado foi também assolado por fortes chuvas, para receber doações que serão direcionadas para dar apoio humanitário às vítimas. Para ajudar, doe pela chave CNPJ 92.958.800/0001-38.
Alternativamente, há outras opções de doação, que também trabalham com ajuda premente, como a Vakinha (Movimento SOS Enchentes) e as Cozinhas Solidárias, do MTST (oferece comida para desabrigados e necessitados). Os Correios estão recebendo doações de insumos (roupas, itens básicos, alimentos etc) para envio sem custo às vítimas. Se preferir, doe para outra instituição de sua confiança.
Essa resenha foi feita em parte com base na edição cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca e Nanquim, que disponibilizou a obra ao JBox.
O texto presente é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site.
Vou ficar de olho nas promoções pra pegar assim que der
Ótimo mánga… Apenas considero o final apressado.
Eu li, e achei fascinante. Acho que é uma das poucas obras do Suehiro Maruo que pode ser lida sem problemas, mais acessível a todos os públicos. o nível de repugnância é baixíssimo. Quem já leu os trabalhos anteriores dele, publicados aqui pela Editora Conrad,como O Vampiro Que Ri, Paraíso: O Sorriso Do Vampiro II e a antologia EroGuro, ou,o ainda inédito por aqui, New National Kid, sabe bem o que quero dizer; a obra de Maruo é para poucos, não sendo recomendada para menores e pessoas sensíveis e/ou impressionáveis. Reza a lenda que o romance original de Ranpo Edogawa tinha fama de ser considerada uma daquelas obras "inadaptáveis"; ao longo dos anos, vários cineastas no Japão tinham planos de fazer um filme, porém nenhum dos roteiros conseguia captar a atmosfera do livro; No entanto, Suerhiro Maruo topou o desafio; ele conseguiu captar em imagens, toda a loucura e visão de mundo do protagonista. Além dos estilos Greco-Romano e Art-Noveau, presentes em toda a ilha, mutos cenários fazem alusão ao famoso tríptico(estilo de pintura dividido em três painéis) O Jardim Das Delícias Terrenas, do pintor holandês Hieronymus Bosch(1450-1516), considerado por muitos historiadores,um precursor do Surrealismo. Sem querer(e procurando evitar) dar spoilers, numa espécie de "licença poética", Seuehro Maruo introduz na história um dos mais conhecidos personagens de Ranpo Edogawa, o intrépido detetive particular Kogoro Akechi, que não aparecia na história original.
O único ponto negativo é que não temos a obra original de Ranpo Edogawa publicada por aqui, para que possamos comparar as duas versões. A obra de Edogawa já está ganhando traduções para o inglês, nos EUA. Ele também já estaria ganhando traduções pela Europa afora. Até o momento, nenhuma editora brasileira demonstrou interesse ou sinais de trazer para cá, a obra deste autor, que está no mesmo patamar de outros mestres da literatura policial e de mistério/suspense, como Agatha Christie e Edgar Alan Poe, e que influenciou centenas de magakás, indo desde Osamu Tezuka, passando por Shotaro Ishinomori, e chegando a Suehiro Maruo e Junji Ito. A título de relato, Junji Ito também adaptou em mangá um conto de Ranpo Edogawa, intitulado A Poltrona Humana(Ningen-Isu, no original). A história de Junji se propõe a ser uma espécie de sequência, se passando logo após o final do conto.