A cultura otaku da qual fazemos parte, consumimos uma porção de coisas, e que com certeza afetou a todos que acompanham esse site, é maravilhosa por muitos motivos. E é sempre interessante observar como ela influencia a produção artística nacional. Um exemplo é a revista Turma da Mônica Jovem, iniciada em 2008, que aproveitou o apelo de mangás e animês para trazer os personagens clássicos das histórias da Turma da Mônica dentro da estética de mangás.

Outra história em quadrinhos nacional que utiliza essa estética, que venceu um concurso em 2013 organizado pela editora JBC, é Quack, do autor Kaji Pato. O sentido de leitura é o nosso padrão (da esquerda para a direita), mas todas as demais características relacionáveis a mangás estão lá, indo do estilo de traço, das expressões cartunescas exageradas, até às linhas de velocidade utilizadas para trazer drama ao quadro.

Quack foi publicado em 5 volumes pela editora Draco e é presença constante no imaginário de quadrinhos brasileiros em estilo mangá há bastante tempo. No ano passado, agora dentro do selo START!, da JBC, a história é reeditada com o subtítulo O Caminho do Vento, compilada em três volumes, com o primeiro já disponível.

imagem: cena de quack.

Imagem: Editora JBC

Na trama, acompanhamos a dupla formada pelo jovem Baltazar Drumont, o mais jovem de uma família lendária de aviadores, e pelo pato Colombo. Em um mundo que é dominado não só por humanos, mas por animais antropomorfizados, eles atuam como mercenários “PJ” para uma grande empresa. A missão da vez é roubar uma estátua de um macaco em uma tribo e levá-la até seu contratante, o rei de uma favela. O desenvolver da aventura e seu pós faz com que eles entrem em diferentes confusões, enfrentem adversários perigosos e caiam de paraquedas em um esquema de tráfico de mulheres comandado por piratas.

Talvez a explicação soe complicada, mas faz sentido ao ler. Especialmente por Pato contar essa história claramente a partir do modo como muitos mangás shounen construem narrativas. Espere então a aventura ser apoiada num tripé de humor, amizade e batalhas elaboradas.

O humor principal está na interação entre Baltazar e Colombo. O primeiro, um moleque que cresceu como um rejeitado, que carrega problemas de autoestima, é atrapalhado, e tem dificuldade de se impor e mostrar seus melhores lados. Uma passagem interessante ocorre quando ele, após derrotar o chefão da aventura anterior, passa a debochar de um novo adversário. Claro, ele se dá mal nisso e aprende com o próprio erro, como manda o tipo de narrativa. O pato, no entanto, é quase o oposto disso. Falastrão, desbocado, debochado. É aquele amigo mais descompensado, mas que é cheio de coração, que protege ao mesmo tempo em que coloca pra baixo.

Os pontos de virada narrativos são marcados por batalhas, em que técnicas de luta diferentes são mostradas para diferenciar os adversários. Mas o roteiro sempre dá um jeito de entregar desfechos mais criativos para essas brigas. Por exemplo, com alguém topando o dedão e quebrando a unha, e aí entra uma regra seguida pelos personagens que ajuda a expandir mais a mitologia desse mundo que está sendo construído.

Infelizmente, não é sempre que isso funciona. Há um segmento inteiro envolvendo uma partida de cartas que é tão empolgante quanto assistir a uma corrida de caramujos em câmera lenta. As outras são bem mais divertidas.

Quack é um “mangá brasileiro” caprichado, recheado de momentos engraçados, com ideias de mundo muito interessantes, batalhas legais, personagens cativantes e todo um ar jovial empolgado que, na maior parte do tempo, faz com que viremos as páginas num andamento muito legal.

Tudo soa como uma mistura entre gibis funny animal (aqueles tipo os do Mickey, Pato Donald, etc., onde animais se comportam como humanos) e o sucesso da vez na Shonen Jump. Só que com um charme a mais vindo de pontos que são legitimamente brasileiros, como os cenários, as gírias e expressões utilizadas pelos personagens.

imagem: cena de quack.

Imagem: Editora JBC

Posto isso, é necessário também abrir um parêntese para apontar algo no quadrinho que pode ou não incomodar quem for procurá-lo pela primeira vez. Quack é uma obra extremamente politicamente incorreta. De modo que há passagens “canceláveis” que, a depender da vontade do leitor, podem ser interpretadas como racistas, xenofóbicas, homofóbicas, islamofóbicas e transfóbicas.

O capítulo que abre o mangá mostra Baltazar e Colombo invadindo uma tribo, no que parece, esteticamente, um país africano, que é povoada por macacos, que são rebelados através de bananas grandes, já que não são alimentados corretamente. O chefe dessa tribo é um macaco voluptuoso que se intitula como crossdresser, usa roupas femininas e utiliza gírias gays como “a loka” e “boy”, além de ter como ataque especial um golpe dado com os glúteos. Outros personagens com uma “afetação” mais feminina também são colocados como vilões ou como esquisitos, como um demônio agiota, e um outro rei macaco que gosta de chupetas.

Um dos capangas desse agiota tem um nome comum a nacionalidades árabes, “Hassad”. E um sátiro, um “homem bode”, é explicado pelo Colombo como uma criatura perigosíssima, pois modificou o próprio corpo para adquirir características de um outro ser, um “transgênico”.

Mas sejamos justos: após derrotarem esse sátiro, Baltazar exclama que “transgênicos realmente são perigosos”, mas de pronto é corrigido por Colombo, que explica que ele, às vezes, exagera um pouco, que o sátiro, por motivos de plot, apenas estava cumprindo sua missão, e que ele mesmo aprende com os erros. Que não sabe o motivo de o sátiro ter modificado o próprio corpo, mas que deve ter um bom coração. Que o preconceito deixa marcas, mas que, por mais que ele seja rabugento, ele não deve agir como pessoas idiotas que fazem bullying. Logo depois há uma piada sobre eles não deverem gostar muito um do outro, pois são machos, mas creio que isso faça parte do próprio ponto colocado.

imagem: cena de quack.

Imagem: Editora JBC

Sou terminantemente contra as formas de preconceito listadas acima na vida real. Ao mesmo tempo, defendo que, dentro da arte, o autor tem o direito de construir sua obra da maneira que bem entender, inclusive se apoiando em estereótipos assim para desenvolver a mensagem que quiser passar. Não sei se é contraditório. É que arte e liberdade artística são mais complexas que discursos de 280 caracteres. Me parece que Quack é formado, em parte, por esses choques causados pelo politicamente incorreto ao brincar com esses estereótipos de mau gosto utilizados há tanto em tantas outras obras.

Tribos africanas eram retratadas como primitivas no passado em filmes, em desenhos animados e histórias em quadrinhos, inclusive lhes dando características de macacos nos traços e comportamentos. Quack, então, extrapola isso ao, literalmente, colocá-los como macacos em uma realidade habitada também por animais antropomorfizados. Gays e drag queens são retratados como vulgares e perigosos, então isso é extrapolado aqui com uma vilã crossdresser cujo ataque é feito literalmente com a bunda. Árabes são retratados como bandidos, então um dos capangas aqui tem nome árabe. Pessoas trans são vistas como monstros por monstros reais na sociedade, então é colocado todo um segmento de alguém que não se considera a melhor pessoa (ou pato, no caso) do mundo admitindo que seu tratamento com “transgênicos” é preconceituoso e que ele deve mudar.

Pode ser isso. Ou não, pode ser apenas a repetição desses estereótipos ruins sem qualquer pensamento crítico por trás. Aí, vale mais de como o leitor irá interpretar o texto que é apresentado ao consumir essa obra. Nessa, Quack se mostra tanto interessante pelos elementos narrativos que a tornam divertida, quanto por esses pontos politicamente incorretos capazes de levantar uma reflexão para além das páginas desenhadas.

A arte, quando nos tira do eixo, inclusive por motivos que nos causam desconforto, é ainda mais legal.


Galeria de fotos

Confira no álbum alguns registros da edição da JBC:


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imagem: capa de quack pela jbc.

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O Rio Grande do Sul segue em situação de calamidade pública, passando por uma das piores tragédias da história do estado, após fortes chuvas e enchentes que permanecem em algumas regiões. O governo estadual reativou o PIX do “SOS Rio Grande do Sul”, criado ano passado, quando o estado foi também assolado por fortes chuvas, para receber doações que serão direcionadas para dar apoio humanitário às vítimas. Para ajudar, doe pela chave CNPJ 92.958.800/0001-38.

Alternativamente, há outras opções de doação, que também trabalham com ajuda premente, como a Vakinha (Movimento SOS Enchentes) e as Cozinhas Solidárias, do MTST (oferece comida para desabrigados e necessitados). Os Correios estão recebendo doações de insumos (roupas, itens básicos, alimentos etc) para envio sem custo às vítimas. Se preferir, doe para outra instituição de sua confiança.


Essa resenha foi feita em parte com base na edição cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora Veneta, que disponibilizou o primeiro volume da obra ao JBox.


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