Kaijuu é uma palavra japonesa bastante interessante. A versão mais comumente usada é 怪獣, que costuma ser traduzida como “monstro”, mas vai um pouco além disso. Tá mais para “criatura estranha”. O kanji de kai, 怪, indica algo suspeito, misterioso, uma aparição fora do comum, enquanto o de juu, 獣, é usado para animais, bestas, feras. Mas há uma outra palavra kaijuu no vocabulário nipônico, 晦渋, um adjetivo utilizado pra designar algo “obscuro”, “ambíguo”, “equivocado”. Ambas funcionam para o uso de kaijuus dentro do universo de produções lá do outro lado do planeta.

E são muitos os usos de kaijuus. Possivelmente, os dois mais populares estão relacionados a tokusatsu: os filmes de monstros gigantes (大怪獣, daikaijuu), como os do Godzilla, Gamera, Mothra, dentre outros, e os monstros em séries de TV, como nas de Ultraman, Kamen Rider, Super Sentai, e por aí vai. Há clichês bem específicos nos usos de kaijuus nessas narrativas. Podem ser monstros que se sentem desconfortáveis nos ambientes, pois são grandes e perigosos demais pra fragilidade do que há em volta. Podem ser forças da natureza, que agem apenas como uma onda ao redor sem uma culpa real do que fazem. Podem ser forças alienígenas ao ambiente cujo intuito é dominar. E pode ser que os poderes dos heróis venham da mesma fonte dos dessas criaturas.

E esses clichês, levados mais à risca ou não, costumam ser replicados quando kaijuus são retratados em outras mídias. Ora, pense em Neon Genesis Evangelion, com os evas, criaturas ligeiramente incompreensíveis num primeiro momento, vindo do espaço para trazer destruição, ou em Shingeki no Kyojin, com o exército usando a “tecnologia” dos gigantes contra eles próprios. Até Digimon, com os digiescolhidos utilizando os digivices para dar poder aos seus digimons, se fundirem com eles, até se tornarem eles, traz muito da veia de histórias com kaijuus.

O mais novo animê a abordar kaijuus como um tema principal, literalmente, traz isso em seu nome. Kaiju No. 8 é a adaptação do mangá de mesmo nome escrito pela Naoya Matsumoto, iniciado em 2020, e ainda em andamento (a Panini publica no Brasil). A direção é de Shigeyuki Miya (do ótimo Blood Lad) e Tomomi Kamiya, com roteiro de Ichiro Okouchi (com obras tão diferentes quanto Planetes, Azumanga Daioh e Devilman Crybaby podem ser no currículo), e produção do estúdio Production I.G (o mesmo dos recentes Fena: Pirate Princess e Moriarty the Patriot).

Imagem: Crunchyroll

Na trama, acompanhamos a trajetória da terceira divisão da força de defesa anti-kaiju*, uma organização paramilitar especializada em enfrentar monstros de diferentes tamanhos e níveis de poder que aparecem no Japão, os kaijus, através do recruta Kafka Hibino. Com 32 anos, considerado velho demais para se alistar nessa divisão, Kafka não é fisicamente habilidoso, mas possui bastante conhecimento na fisiologia dos kaijus. Além disso, ele tem uma promessa de infância com a capitã dessa divisão, Mina Ashiro, de que eles lutarão juntos contra esses monstros.

*Nota do editor: a localização oficial da série romaniza a palavra 怪獣 com apenas um “u”.

Só que Kafka já falhou no teste de admissão em vários anos seguidos, sendo essa a sua última chance de entrar. O problema, ou a solução, é que, após um ataque, enquanto está hospitalizado, uma criatura aparece para ele e entra dentro de seu corpo, transformando Kafka em… um kaiju! O rapaz consegue alterar sua aparência, podendo passar disfarçado entre humanos, mas agora ele carrega um grande segredo e um grande poder. E quando ele é avistado pela primeira vez pela força de defesa e consegue fugir, é denominado como o “Kaiju número 8”.

Kaiju No. 8 me parece uma mistura de conceitos mais básicos de tokusatsu, com a novela A Metamorfose, de Franz Kafka, entregue através de uma narrativa aventuresca shounen. A inspiração mais clara está em Kamen Rider, tanto nas abordagens mais agressivas do Shotaro Ishinomori pros mangás, quanto no que ainda é feito hoje nas séries de TV.

Existem batidas de roteiro que se repetem em Kamen Rider, que mais ou menos montam o cerne do que é a série, que são utilizadas aqui. Uma delas é o fato de o que dá poder aos vilões ser o mesmo que dá poder aos heróis. Em No. 8, Kafka, que é alguém que quer lutar contra kaijus, consegue as habilidades para isso, justamente, quando é invadido por um kaiju. Demais personagens da força de defesa anti-kaiju utilizam armas que foram criadas a partir dos corpos de kaijus numerados que eles enfrentaram antes. Em uma batalha mais para o final da série, envolvendo Kafka e um figurão grande desse universo, é dito que é como se dois grandes kaijus estivessem lutando ali, pois a arma utilizada carrega muito das características do kaiju a partir de qual ela foi confeccionada.

Imagem: Crunchyroll

Outra batida de roteiro é existir uma certa monstruosidade que traz sofrimento ao protagonista além do poder que ele carrega. Isso fica evidente não só pela figura do Kafka quando está transformado em kaiju, com partes grotescas, assustadoras aos que estão ao redor, mas pelo descontrole que ele é levado a atingir quando colocado sobre muita pressão, deixando assim seu lado humano de lado para que a besta apareça.

Nessa, entra muito do que o outro Kafka, o Franz, fez em A Metamorfose. Kafka, o personagem, torna-se um monstro e precisa lidar com isso num tom mais cru, onde o fato é visto com realismo pelos demais em seu ambiente. E aí, juntam-se as discussões sobre a idade dele, sobre ele estar velho demais para isso, e os conflitos cotidianos de um jovem adulto num mundo que parece ter andado e não permitido que ele, agora, fosse mais do que um monstro.

Kaiju No. 8 acaba levando essa discussão para fora da tela quando pensamos em uma sociedade atual onde a juventude, e conquistar coisas com o mínimo de idade possível, acaba sendo um medidor de sucesso em redes sociais. E isso também pode ser aplicado especificamente ao Japão se imaginarmos isso como uma alegoria à vida idol por lá, em que não conseguir um hit nas paradas musicais durante a adolescência é praticamente uma sentença de morte comercial. Me parece uma crítica ao etarismo, onde pessoas acima dos 30 já são consideradas “monstras” socialmente, e que precisam abrir mão de seus sonhos para que outras, mais jovens, possam viver isso no que socialmente é tido como o “tempo certo”.

Imagem: Crunchyroll

Para além disso, também é interessante ver como o roteiro aborda o lado menos “glamuroso” do que seria uma realidade onde monstros invadem cidades. Em filmes e seriados, é comum assistirmos aos combates, vermos a glória dos heróis. Aqui, vamos também como os trabalhadores mais de chão, que não recebem os louros pelo que fazem, lidam com coisas como a limpeza de um cadáver gigante no meio da cidade, por exemplo. Como será remover um intestino cheio de fezes de kaiju antes do almoço? A resposta é mostrada, e com muito bom humor.

Mas o mais legal é que o animê entrega essas reflexões a partir de um estilo de contar história bem shounenzão mesmo. A narrativa é acelerada, com combates criativos utilizados para pontuar as viradas de trama, adversários e inimigos escalando de poder para que observemos a evolução dos personagens nos treinamentos, momentos de pura graciosidade ocasionados pelas amizades formadas ali, junto de várias e várias cenas de pura “legalzice” estética. O protagonista é apaixonante, e os secundários também preenchem a tela com personalidades próprias e bem diferentes entre si. A Kikoru Shinomiya já é uma das bad girls mais icônicas desse ano.

Particularmente, não tenho me empolgado tanto com a safra de 2024, poucos animês têm chamado muita atenção além de Dungeon Meshi (que possivelmente será o que de melhor teremos esse ano, anote), mas Kaiju No. 8 consegue fazer jus às expectativas colocadas nele. É uma obra divertida ao máximo, com inspirações ótimas e que traz um subtexto bem mais interessante do que parece num primeiro momento.

Veja também:

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▶️ Elenco brasileiro de ‘Kaiju No. 8’ compartilha experiência com o serviço de limpeza de monstros | Entrevista


Kaiju No. 8 é exibido pela Crunchyroll, com opções dublada e legendada. O serviço fornece um acesso de imprensa ao JBox.


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