O Anime Friends 2024 ocorreu há poucos dias e uma coisa chamou bastante a atenção – na realidade, uma ausência: a Crunchyroll. No ano passado, a empresa, pela primeira vez em muitos anos de evento, não teve um estande, mas sim apenas um espaço. Neste ano, ela não esteve nem em espaço físico e nem com atrações.

A escolha da Crunchyroll parece um contrassenso. O Anime Friends é um evento no qual ela vinha sendo basicamente o carro-chefe: o maior estande, o mais lotado, a maior marca presente. Sendo assim, é estranho que a empresa abra mão de estar em uma convenção que não é pequena e onde ela é uma das atrações principais.

A única presença da marca ali era a loja licenciada Lojanime vendendo estampas de séries do catálogo da Crunchyroll, como Haikyuu. Mas, a empresa também possui licença para trabalhar com marcas vindas de outros licenciantes (mesmo que algumas também estejam coincidentemente na Crunchyroll). Por tabela, a marca também poderia ser vista em painéis de dublagem, como o da Dubrasil, estúdio paulista que é uma das principais casas a prestar serviço para o streaming.

Poderia ser que a Crunchyroll abriu mão do AF para poder investir em um estande maior na CCXP — essa, no entanto, parece uma estratégia que também não faz muito sentido. Não acredito que a Crunchyroll consiga fazer frente à Netflix, ou mesmo a empresas como Warner, numa CCXP. Ela ainda é nicho.

Ainda poderia ser que a empresa entende que não tem nada a “ganhar” no AF, uma vez que o público otaku já seria cativo dela, e os ganhos seriam irrelevantes. Bem, por essa lógica a Netflix não iria mais na CCXP e nem faria seu evento próprio. Eventos não são sobre ganhos de assinatura, mas sobre fazer barulho e demonstrar alcance. Eventos são marketing. E a Crunchyroll perde uma oportunidade nesse sentido.

 

Estranha ausência

imagem: mascote maru-chan em ilustração oficial do anime friends.

Divulgação: MD.

Não existe hoje um serviço oficial de animê que faça frente à Crunchyroll no Brasil no streaming, isso é verdade. Mesmo concorrentes como a Anime Onegai ainda são muito modestas, embora possam aproveitar o “vácuo” para fazer o barulho que conseguem (que é pouco).

Enfim, talvez haja um motivo que faça bastante sentido e justifique a ausência da plataforma de streaming no maior evento de animê de seu suposto terceiro maior mercado global (o Brasil). Mas, a bem da verdade, pouco importa. A redução de presença da empresa ano passado e a ausência praticamente total neste ano já são o suficiente para deixar uma impressão de que ela simplesmente não se importa.

Soma-se a essa narrativa o fato, acidental, de que no primeiro dia do AF, a Crunchyroll estava mais ocupada apresentando sua nova identidade visual, um tema que é pouco relevante para o público. Para os clientes brasileiros, menos relevante ainda que um Anime Friends com diversas atrações japonesas que nunca vieram ao país. Parece um descaso tão grande que é hilário, embora a escolha da data pela Crunchyroll seja provavelmente mera coincidência.

Mesmo se o evento fosse “caro demais” para os olhos da Crunchyroll, todo mundo sabe que a empresa é estrangeira e a verba internacional é liberada em dólar. E o real é bem barato perto do dólar. Bem, verdadeira ou não, tudo que uma narrativa precisa para se estabelecer popularmente é o mínimo de lastro na realidade e a ausência de uma contranarrativa que faça tanto ou mais sentido.

 

Declarações na imprensa

imagem: hime e seu gato em ilustração da crunchyroll.

Divulgação: CR/S.

Já disse em um outro texto a minha impressão sobre a atuação, ou melhor, a desativação e terceirização da atuação da empresa no Brasil. E agora voltarei a fazer uma reflexão somando a isso o Anime Friends e informações presentes em uma série de artigos publicados há alguns meses no g1.

A jornalista do g1 foi até o Japão conversar com a atual diretora de operações, Gita Rebbapragada (em inglês o cargo é COO) e com Terry Li, vice-presidente executivo de negócios emergentes.

Gita assumiu a posição quando Brady McCollum deixou o cargo no ano passado, após mais de 10 anos trabalhando na empresa — até então, Gita atuava como diretora de marketing. Já Terry foi anteriormente gerente do setor de games da Crunchyroll.

As declarações dadas se somam a fatores importantes que ajudam a entender melhor a relação da empresa com o Brasil após a compra pela Funimation/Sony – algo também já pincelado no texto anterior.

Além disso, não é tão comum a imprensa brasileira conseguir acesso a funcionários do alto escalão da matriz operacional, então as falas também têm valor pelo ineditismo das entrevistas, apesar de, infelizmente, parecerem bastante protocolares e institucionalizadas.

Segundo a série de artigos do g1, o Brasil é o terceiro maior mercado consumidor de animês, se excluirmos Japão e China do cálculo, ficando atrás de EUA e Índia. A fonte desta informação, no entanto, não está clara: ao longo da matéria acerca do tema, são citadas a Crunchyroll e a Parrot Analytics. Uma outra reportagem traz a MUSO, que assim como a Parrot, analisa consumo de pirataria digital.

Logo, a fonte é uma empresa de streaming de animê que não atua no Japão e na China, ou é de empresas que estipulam o consumo pirata em sites ilegais de streaming? Não é absurdo supor que essa informação, na verdade, significa que o Brasil é o terceiro maior mercado da Crunchyroll (embora, como está redigida, só esteja claro que é terceiro maior em mercado potencial). Se for isso, na verdade, também deixaria evidente o investimento da empresa na Índia.

A Crunchyroll passou a investir mais pesado no território indiano em 2022, o que implicaria que, antes desse foco, o Brasil provavelmente era o segundo maior mercado da empresa. Isso considerando o país sozinho, dissociado do bloco América Latina.

E aqui percebemos algumas coisas interessantes. Nas matérias do g1, temos o seguinte trecho:

Há muita celebração da cultura japonesa no Brasil, por isso é tão importante para nós nos envolvermos em projetos no país”, diz Gita Rebbapragada, diretora de operações da Crunchyroll. Principal plataforma on-line para consumo de animes no mundo, a empresa montou uma equipe em São Paulo, tem investido na tradução de títulos para o português e ampliado a participação em eventos de fãs, como a CCXP, que acontece na capital paulista.

Note que a palavra usada para a atuação da Crunchyroll no Brasil é equipe, e não escritório. Isso porque a Crunchyroll nunca montou um escritório no seu agora provável terceiro maior mercado global. Já na Índia, onde investem pesado há apenas dois anos, já foram abertos dois escritórios.

Gita também cita apenas a CCXP como evento de fã, talvez já dando a pista do novo foco da empresa. Mas a Crunchyroll não tem um histórico tão longo assim com o evento. Se ausentar do Anime Friends e não estar presente em nenhum outro evento de animê também não é bem uma “ampliação de participação”.

 

Mas, qual o motivo?

imagem: tohru confusa em Kobayashi-san.

Divulgação.

Há quase 12 anos no Brasil, a Crunchyroll começou a atuar por aqui quando ainda tinha uma atuação geral muito módica. Mesmo crescendo, até 2021, a empresa não era uma presença tão regular na CCXP, por exemplo (participou só em 2017 e 2018), e mesmo sua atuação no Anime Friends ainda era bastante limitada. Isso tudo indica que havia pouco recurso para um investimento mais robusto, como seria abrir escritório ou ter presença forte em muitos eventos.

Não dá para dizer que dinheiro é um problema na situação atual, o que torna pouco compreensível o motivo de o provável terceiro (e possivelmente ex-segundo) maior mercado da empresa não ter um escritório, quando mesmo um mercado que não era foco até há dois anos já recebeu dois. E menos compreensível ainda é não estar num evento do porte do AF (que tem problemas, eu sei, mas ainda é o maior do nicho no país).

A abertura de um escritório significa interesse em atuação mais localizada no mercado, e é um bom sinal de investimento, já que tanto abrir quanto fechar um escritório implica custos consideráveis, então a falta de um no Brasil indica que há ou algum tipo de “pé atrás” ou descaso com o país (pensando no clima político por aqui, certa insegurança é até justificável, mas economicamente não faz tanto sentido). Some a isso o que andamos vendo recentemente, e o panorama parece distante de “investimento”.

Como dito já no texto anterior, não há problemas em focar na Índia. É um mercado grande, que tem se tornado cada vez mais importante para os EUA no cenário geopolítico de disputa com a China e a Rússia. Além de ser também um país com leis trabalhistas cada vez mais sucateadas, onde empresas americanas enxergam vantagens financeiras e fiscais de atuação (nós também estamos em processo de sucateamento da força de trabalho, mas ainda não somos tão “vantajosos” assim).

Mesmo sem as duas variáveis citadas (disputa geopolítica e leis trabalhistas), ainda seria um mercado enorme o suficiente para tornar qualquer atuação (de qualquer empresa) por lá bastante válida e atraente. O mercado indiano é sim um mercado que tem importância no cenário mundial. A questão aqui é que o Brasil também é, e tende, por enquanto, a se tornar cada vez mais, um mercado-chave na situação geopolítica atual.

Talvez alguns iludidos pensem que os problemas são qualquer bobagem como encargos fiscais e trabalhistas, que “ter empresa no Brasil é caro” e qualquer outra coisa que se diga em senso comum.

Vale pontuar, no entanto, que leis nunca impediram a Crunchyroll de atuar na Europa, e lá a legislação é muito mais severa com tudo, desde direitos trabalhistas até dados digitais, do que no Brasil.

A Crunchyroll EMEA tem escritórios na França (Paris) e na Suíça (Lausanne), e pode apostar que a lei nesses países é mais restritiva que aqui. Esse discurso de que os encargos não compensam é só uma desculpa cômoda pois as empresas sabem que é feio dizer “não ligamos o suficiente”, e, neste caso, tenho poucas dúvidas de que o Brasil deve ter mais assinantes do streaming que toda a zona do euro (antes que algum chato fale, eu sei que a Suíça não é parte da zona do euro!).

Não só isso, mas com a saída da coordenadora brasileira de mídias sociais, a questão de gerência de redes e comunidade da Crunchyroll foi, ao que tudo indica, repassada para uma empresa terceirizada, o que geralmente aumenta o número de desencontros entre a ponta (quem posta) e a matriz, uma vez que os gaps comunicacionais são amplificados. Além disso, dificilmente, nesses casos, há uma comunicação clara sobre o modo como o profissional anterior trabalhava. Terceirização é geralmente a escolha de quem prefere cortar custos operacionais, mas isso faz sentido em um dos mercados centrais (segundo o que a própria empresa tenta dizer em entrevista)?

 

Investimento e pirataria

Imagem: Luffy comendo Cup Noodles.

Divulgação: EO/S.

O que tudo isso indica é que a Crunchyroll está investindo na Índia, e está reduzindo o investimento no Brasil. Pode ser que a empresa acredite que o mercado indiano ainda tem um grande potencial, enquanto o brasileiro atingiu um certo limite. Embora isso justifique o motivo de investir forte na Índia, não justifica o motivo do aparente sucateamento operacional em nosso país.

Acredito que existe certa ilusão do mercado num geral com o potencial lucrativo do nicho de animês, mas não me parece que as ações da Crunchyroll são um simples “desencanto” com os números do Brasil, e sim relacionadas a posições de políticas comerciais dela como empresa.

Tem uma outra fala, essa do vice-presidente executivo de negócios emergentes da empresa, que me interessa nas reportagens:

Não dá para dizer que os animes ainda fazem parte de um nicho, mas eles ainda não têm um fluxo super incrível. Estamos tentando descobrir formas de ampliar isso.

É um pouco difícil entender como a empresa pretende ampliar o fluxo dos animês em uma região quando ela está aparentemente cortando custos e fazendo pouco caso do trabalho que vinha sendo construído por pessoas centrais na atuação e crescimento da marca no país.

Por exemplo, nas temporadas mais recentes, tivemos inclusive o “retrocesso” dos títulos localizados: nenhuma das novas séries está recebendo nome traduzido em nosso idioma, política que vinha acontecendo desde pelo menos o final de 2022.

Voltamos aos títulos em inglês para novas séries (só as que entraram localizadas anteriormente seguem com os nomes em português), outro indício do descaso da empresa. Pode parecer bobo, mas sequer se preocupar em traduzir títulos para a língua do mercado consumidor traz um sinal claro da disposição que a Crunchyroll anda tendo com o Brasil.

Como há pouca concorrência de nicho para o serviço, ele deve se manter bem financeiramente por aqui. E mesmo que haja perdas, o provável é, como outro artigo da série do g1 já canta a bola, que a Crunchyroll aponte a pirataria como seu maior vilão no Brasil.

Bem, a pirataria é de fato a segunda maior fonte de consumo dos animês, de acordo com o Lojanime, atrás apenas da própria Crunchyroll.

Levantamentos da MUSO também indicam que pirataria é ainda muito forte no nicho de animês, ao menos nos streamings ilegais, mas ainda apontam que, em termos gerais, a pirataria no Brasil está em queda (e pode apostar que a Crunchyroll não vai culpar a pirataria por baixa performance no Canadá, onde ela está em alta).

Os números do Torrent Freak, que mapeia downloads via torrent, não trazem animês com tanta prevalência, mas podem ser diferenças em comportamento geracional ou de nicho. Há muitos sites piratas de streaming especificamente de animê, em comparação a outros nichos, o que já é indício de que o público otaku tem maior preferência por esse modelo.

Não há mais muito que se tirar das matérias do g1 porque as declarações são repetidas entre os textos. No mais, segue cada vez mais forte a impressão de que a empresa vem, ao contrário de suas declarações protocolares, deixando o mercado brasileiro de lado (o que é, no fim das contas, uma escolha que a gestão tem liberdade para fazer).

A debandada de funcionários nos últimos meses faz crer também que isso faz parte de um sucateamento geral, que poderia ter levado a uma crise institucional — uma crise financeira não parece estar inclusa, ao menos por enquanto, mas quem conhece a Sony em outros setores sabe que esse conglomerado pode trabalhar com projeções de crescimento e lucro otimistas até demais (e às vezes tem coisas estranhas, como um caso recente bem esquisito de supostas falsificações de falas em entrevista).

Como já dito anteriormente, a Índia é uma das queridinhas dos EUA dentro do tenso panorama internacional atual. Uma escolha de “sucatear” mercados-chave para poder investir mais por lá tem, como toda escolha em momentos sensíveis, seus riscos, e pode tanto ter resultados melhores que o esperado quanto ter um custo caro.

A venda de séries importantes do catálogo para a Netflix, se for realmente uma parceria com a Crunchyroll (algo não anunciado oficialmente, mas provável pela presença de dublagens que, até onde se sabe, são de posse exclusiva da “empresa laranja”), funciona ao mesmo tempo como uma tentativa de popularizar as séries (além de um acordo provavelmente bastante lucrativo).

Se essa pode parecer a única ação mais recente da empresa para crescer o nicho no Brasil, também parece um investimento que traz pouco retorno de assinantes, uma vez que o consumidor da Netflix (o “otaku ocasional”, que acessa o que streamings grandes oferecem) provavelmente responde a um perfil diferente do consumidor da Crunchyroll.

Quem vai assistir a toda a série de OVERLORD com anos de atraso dificilmente se interessa por animês da temporada, embora haja uma possibilidade de conversão de público aí, já que a base de assinantes da Netflix é bem mais ampla. Mas a venda ainda poderia ser uma negociação com alguma das empresas donas da Crunchyroll, como a Sony Pictures.

Por aqui, fica a expectativa de que a atuação da empresa torne-se cada vez mais protocolar. A Crunchyroll deve seguir com presença em eventos grandes, com eventuais eventos pontuais de estreia de filmes, propagandas no metrô de SP, e talvez em outros lugares, mas nada muito além de uma presença meramente institucional, talvez até um tanto “fria”. No fim das contas, a escolha é dela.


O texto presente neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.


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