O uso de trens como metáfora dentro da produção artística japonesa, por algum motivo, é bem comum. Em “Sentimental Train”, o AKB48 utiliza o caminho percorrido nos trilhos como uma parábola para o fim da adolescência. Em “1mm”, o Perfume faz isso para se referir a pensamentos tristes ocasionados por não estar com quem se ama.

De A Viagem de Chihiro e Digimon Frontier até Demon Slayer e Shokugeki no Souma, cenas ou passagens inteiras envolvendo trens pontuam mudanças dentro dos universos dessas tramas. Valem para muita coisa. Para significar uma mudança dos personagens, que saem “de uma estação a outra” em suas vidas, ilustrar uma crescente de sentimentos, e por aí vai.

Recentemente, um animê trouxe essa metáfora do trem para o primeiro plano de sua narrativa, e construiu uma história inteira a partir disso. Train to the End of the World (Shuumatsu Train Doko he Iku?) é uma produção do estúdio EMT Squared, com direção de Tsutomu Mizushima e Fumihiko Sugunuma, e roteiro de Michiko Yokote. A criação é de alguém que usa o apelido apogeego, que toca um mangá que começou a sair de maneira quase simultânea ao desenho animado.

A trama é uma loucura, mas segura na mão do tio aqui que tentarei explicar. Tem essa dupla de melhores amigas, a Shizuru Chikura e a Yoka Nakatomi, que moram em Agano, uma região mais rural, e costumavam fazer tudo juntas, mas que se desentendem. Yoka quer estudar astronomia, o universo e os mistérios nele, mas Shizuru acha que esse tipo de sonho só é válido para pessoas muito inteligentes, e que a amiguinha jamais conseguirá isso, o que magoa Yoka profundamente.

imagem: personagens lendo bilheter/mapa.

Imagem: Crunchyroll

Yoka, então, decide visitar uma cidade grande a algumas estações de trem dali, Ikebukuro. Ao chegar lá, é sorteada para ser a pessoa que iniciará a rede de internet/telefonia 7G, que promete tornar a comunicação ainda mais instantânea do que já era.

Contudo, quando a menina aperta o botão para lançar a 7G ao mundo, a realidade como era conhecida entra em colapso. Os limites entre o real e o surreal já não existem mais. O espaço entre fronteiras se estica, cidades adquirem formas variadas, pessoas adquirem novas identidades e regras da física, química, biologia, sociais e tudo mais, são mudadas.

Alguns anos se passam e Yoka está desaparecida. Shizuru permanece em Agano com as outras poucas meninas dessa mesma faixa etária que tinham no vilarejo, a sensata Nadeshiko Hoshi, a energética gyaru Reimi Kuga, e a calada Akira Shinonome. O porém é que, após o incidente do 7G, todos os moradores de Agano, quando completam 21 anos, se transformam em animais que ainda têm os pensamentos humanos e a capacidade de falar (mas só por enquanto!).

Quando um grupo de caminhoneiros mercadores passa pelo vilarejo e leva um jornal que traz a foto de Yoka em uma reportagem, com a ajuda do maquinista Zenjiro Taira, Shizuru resolve ativar o trem parado na estação de Agano e partir rumo a Ikebukuro atrás da ex-amiga.

As outras meninas e o cachorro abandonado por Yoka se juntam à aventura. O problema é que, como a realidade agora está mudada, a viagem que antes não levaria uma hora e meia, agora levará dias. E com grandes possibilidades de perigo à frente, já que as meninas estão rumando, literalmente, ao desconhecido.

Daí em diante, Train to the End of the World adquire elementos de road movies, arte surrealista e de videogames, com cada estação passeando por gêneros e representando uma aventura única, dificuldades distintas e uma gama de regras e personagens que tornam cada episódio especial e diferente entre si. Mas, claro, tudo com aquela energia aventuresca de animês de meninas, onde as personalidades conflitantes delas geram grandes momentos de drama e comédia.

imagem: personagem e condutor em cabine de direção do trem.

Imagem: Crunchyroll

A grande graça do animê é ele aproveitar esse conceito de cada estação ser a descoberta de algo novo para pirar nas ideias apresentadas, inclusive brincando com gêneros. Há flertes com horror envolvendo uma cidade controlada por cogumelos e outra dominada por zumbis, além de uma estação onde elas são recepcionadas por bodes enfurecidos.

Ocorre todo um segmento extremamente divertido que homenageia o universo de garotas mágicas e tokusatsu. A história ganha ares de thriller político e filmes kaijuu quando elas chegam num local onde todos estão encolhidos. E um dos episódios mais impressionantes de animês nesse ano aqui é montado numa piada envolvendo três mangakás famosos.

O mais legal é que a narrativa acompanha visualmente esse roteiro enlouquecido. São telas e mais telas com estéticas absurdas, possivelmente inspiradas no movimento artístico surrealista, que nos passam a impressão de que, de fato, essas meninas estão rumando ao fim do mundo. A cada nova estação, as coisas ficam mais insanas aos olhos. E quando, enfim, elas chegam à cidade de Ikebukuro, é quando o surrealismo chega em seu ápice.

Mas lembre: esse é um animê que utiliza a metáfora do trem como seu fio condutor. Ou seja, para além de toda essa insanidade estética, o que acompanhamos é a jornada de emoções das personagens ali.

No fim, é uma parábola sobre remorso e busca pelo perdão, em que o mundo, para o lado de fora, está tão destruído e acabado quanto está dentro da cabeça da protagonista após ter brigado com sua melhor amiga. Para consertar isso (o mundo dentro e fora dela), ela precisa enfrentar esse problema. Train to the End of the World é bonito em tudo o que se propõe, e possivelmente conversa com qualquer um que já esteve em uma situação parecida.

Bom demais, galera! Ótima surpresa de 2024!


Train to the End of the World é exibido legendado pela Crunchyroll. O serviço fornece um acesso de imprensa ao JBox.


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