Já ouviu aquela expressão, “Paciência de Jó”? Ela é usada para se referir a uma quantidade muito grande de paciência, e vem de uma parábola bíblica, sobre os Lamentos de Jó. Dentre diferentes traduções, interpretações e maneiras de contar isso, na história, temos uma espécie de aposta entre Deus e o capeta envolvendo Jó, um ricaço que, mesmo não tendo necessidade material alguma, ainda assim serve a Deus.
Satã, não o pai da Videl, e sim o anjo caído, chega para o Criador e diz que a adoração de Jó só acontece porque ele não tem dificuldade nenhuma. Aí, Deus tira tudo de e Jó: queima as casas, as plantações, mata o gado, os 10 filhos, e ainda deixa ele à beira da morte com lepra. Mas mesmo ao passar por tudo isso, Jó mantém a paciência, pois tem fé que, ao final, as coisas terminarão bem. E terminam: ele se cura da lepra, conhece uma nova mulher e tem mais 10 filhos, retoma sua riqueza e vive confortavelmente até os 140 anos. Ou algo assim.
A moral da história, como ocorre em toda parábola bíblica, é que é preciso ter paciência mesmo nos piores momentos da vida. Não se deixar levar pelos sentimentos ruins ou fazer besteiras quando as coisas não estão indo bem. Contudo, chuto que essa parábola não teria o mesmo fim caso Jó, entre suas provações, tivesse sido forçado a assistir a Rick and Morty: The Anime. Pois nem toda a paciência de Jó seria o suficiente para não se irritar com esse desenho. Talvez, Jó teria amaldiçoado o Todo Poderoso, queimado cidades, e iniciado uma religião satânica em tempos bíblicos.
Rick and Morty, originalmente, é um desenho animado estadunidense criado por Justin Roiland e Dan Harmond em 2013, já com sete temporadas. Na trama, Rick é um inventor maluco que coloca seu neto Morty em diversos problemas, que envolvem tramas intergalácticas e viagens pelo multiverso.
Considero as três primeiras temporadas da animação excelentes. Há um humor meio mórbido e afiado no jeito como o roteiro retrata essas aventuras e as possibilidades insanas nelas. Se havia algum desfecho mais óbvio para as situações apresentadas, a série sempre dava um jeito de chutar isso para o alto e ir pelo lado mais distorcido em suas soluções.
Da quarta temporada em diante, talvez pelo sucesso das anteriores e do enorme grupo de fãs discutindo teorias de lore colocadas nos episódios na internet, tenho a impressão de que a série perde um pouco a mão. Os roteiros passam a ficar autorreferentes demais, parece haver uma necessidade de escalar tudo narrativamente, e o que antes eram sacadas legais dentro do humor e da ficção-científica, agora, parecem piadas autoconscientes e desesperadas para soarem “espertas”.
Então, a série passa a alternar entre episódios ainda muito legais, e outros chatíssimos. Há um na quarta temporada chamado “Rattlestar Ricklactica”, envolvendo um planeta de cobras e viagem no tempo, que quase me fez desistir para sempre.
E agora vamos a Rick and Morty: The Anime. Não é a primeira vez que os personagens são explorados dentro do universo animado japonês. Diferentes curtas já haviam sido lançados como especiais entre 2020 e 2021, produzidos no estúdio Deen. Essa, no entanto, é a primeira vez em que uma temporada inteira é feita em animê. Agora, pelo estúdio Sola Entertainment, com direção e roteiro de Takashi Sano (de Tower of God, mas que também já havia trabalhado em dois dos especiais anteriores no estúdio Deen).
Com uma história que, aparentemente, acontece entre o fim da sexta e o início da sétima temporada do desenho, acompanhamos uma série de eventos simultâneos no multiverso enquanto Rick se perde entre dimensões, Summer e Beth Espacial enfrentam a Federação Galáctica, e Morty se apaixona por uma jovem chamada Elle.
Rick and Morty: The Anime entrega duas coisas bem aguardadas pelos fãs: uma série em animê com os personagens em vez de só episódios especiais e uma temporada “séria” de Rick and Morty. Essa é uma interpretação dramática do mundo dos personagens, no sentido de não ser uma comédia mesmo. É uma história de ação, ligeiramente triste, melancólica, em que os eventos ocorrem sem os ganchos humorísticos que permeiam o desenho animado original. E esse está longe de ser o problema no animê. O problema é outro.
São dez episódios de vinte e poucos minutos, sendo que nove deles esticam uma história que facilmente poderia ser contada em dois ou três, no máximo. O fio condutor dessa temporada está em Elle, uma personagem com uma habilidade semelhante ao do Dr. Manhattan, do gibi Watchmen, de conseguir enxergar seu fluxo temporal como um só. Para ela, não há distinção entre passado, presente ou futuro. Em sua cabeça, ela vivencia tudo isso ao mesmo tempo. Ela já sabe como sua vida será do início ao fim, e não tem poder algum para mudar nada.
Morty, enquanto está num jogo de realidade aumentada construído pelo Rick, a encontra como jogadora, e se apaixona por ela. Ocorre que o mundo daquele jogo está em conflito com outra dimensão, e o que acontece ali, na verdade, acontece de verdade.
Seguimos então algumas narrativas diferentes, com os desdobramentos do relacionamento de Morty e Elle em diferentes dimensões, em paralelo a acontecimentos de Ricks em diferentes dimensões, e de Summers, Beths Espaciais e da família num todo enfrentando os alienígenas insetos da Federação Galáctica em diferentes dimensões.
A narrativa é contada de um jeito picotado, não linear. O que vemos, ao longo dos episódios, são recortes dessas ações: uma passagem com uma invasão aqui, um segmento com Morty e Elle na escola ali, um levante rebelde comandado por um Morty que não é o Morty principal e tem como coadjuvante a Elle que não é a Elle humana acolá, Rick transitando entre realidades, e por aí vai.
Isso faz sentido esteticamente dentro do conceito de tempo apresentado através da Elle. Como ela enxerga tudo ao mesmo tempo, como ela vive tudo ao mesmo tempo, como para ela não há distinção de começo ou fim, nós, como espectadores, somos colocados nessa situação através desses episódios.
Neles, não vemos um andamento tradicional, não é a estrutura em três atos mais convencional de narrativas europeizadas, onde um conflito é apresentado nos minutos iniciais, desenvolvido na meiuca, e resolvido ao fim. Há episódios onde resoluções de coisas que sequer foram apresentadas já acontecem, outros onde são só desenvolvimentos.
Se isso é coerente tematicamente, o resultado dessa montagem na narrativa beira ao insuportável. Quase tudo é tão descolado entre si que assistir aos episódios é mais um esforço de montar um quebra-cabeça sem todas as peças necessárias, do que acompanhar uma história intrigante.
Imagine uma sequência de quatro, cinco episódios só com essas meiucas de roteiro, extremamente monótonas, onde não há qualquer resolução, qualquer pagamento ao final. Numa grande parte do tempo, a impressão de que estamos assistindo a um dever de casa em vez de uma série animada é enorme.
Para piorar, essas várias narrativas parecem desnecessariamente esticadas para preencherem espaço nesse estilo de edição picotado. Ao terminar o animê, fiquei com a ideia de que aqueles mesmos acontecimentos, caso contados de um jeito mais convencional, não ocupariam o tempo de tantos episódios assim. Certamente, não teriam tantas cenas repetidas, cortariam excessos para não causar tédio, iriam mais direto ao ponto.
A única exceção é o último episódio. Após o encerramento de todos esses acontecimentos não lineares simultâneos, Morty é colocado em uma realidade onde ele vive como seria a vida com a Elle. Acompanhamos uma história de família, com os conflitos do Morty envolvendo a namorada, depois esposa, e também outro amor pelo qual ele precisou abrir mão, agora entrando nesse jogo familiar e lhe despertando sentimentos que colocam a perder o que de melhor ele já conquistou. Diferente do resto da série, é singelo, bonito, melancólico, e estupidamente identificável.
Os nove anteriores, não. Os nove anteriores são o que de pior Rick and Morty tem a oferecer desde que passou a oscilar tanto em qualidade: um bando de ideias complicadas demais num roteiro que é mais frágil do que sagaz para resolvê-las, uma chuva de autorreferências que servem para coisa alguma dentro da narrativa, e todo um ar pedante de algo que tenta ser legal demais para espectadores comuns, mas só entrega mesmo o maior teste de paciência de 2024. Uzumaki, pelo menos, resolve tudo em 4 episódios só.
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Rick and Morty: The Anime é exibido no Brasil pela Max, com opções dublada e legendada.
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Esse anime é pior que calvinismo!
A casa caiu! E tinha potencial, mas não aproveitaram.
Tranquilamente o pior anime que já assisti na vida…
Uma bosta esse "anime".