Em uma extensa matéria publicada no último dia 20, a agência americana Bloomberg expôs uma série de turbulências que estariam ocorrendo internamente na Crunchyroll, uma progressão de problemas que se somam desde a aquisição da plataforma pela Sony — que ocasionou a fusão com a Funimation em 2022.
A reportagem ouviu 18 funcionários e ex-funcionários da empresa, que demonstram uma piora generalizada no ambiente de trabalho da plataforma de streaming. A tensão já teria começado logo após a compra. Os profissionais ouvidos pela Bloomberg relatam que, antes da fusão, a Crunchyroll teria uma cultura mais amigável de relação com seus empregados, que se sentiam ouvidos — em momentos de maior dificuldade, a frase “pelo menos não trabalhamos na Funimation” seria comum. As coisas mudaram de cenário, ao ponto de que funcionários vindos da Funimation se referiam aos novos colegas como “piratas”, em alusão ao passado da empresa. Pesquisas internas acessadas pela agência ainda mostrariam que o número de funcionários que se sentem motivados no serviço caiu de 51% para 39%.
Meses após a compra, houve a saída do CEO Colin Decker e da gerente geral Joanne Waage — à reportagem, ela disse que queria focar na família e abrir uma empresa em outra área. Em setembro de 2023, Brady McCollum, diretor operacional que estava há 15 anos na Crunchyroll, também se retirou — meses após movimentos de saída também refletidos por aqui, quando o então gerente de mercado para Brasil e Portugal, Yuri Petnys, deixou a plataforma.
Parte do mal estar também estaria no fato de que a nova gerência não entende bem o público do nicho que está lidando, chegando a se referir ao produto animê como mero “desenho infantil”. Já houve três rodadas de demissões desde a aquisição, e uma nova “reorganização” está agendada para o começo de 2025.
Desconforto com a chefia e o Japão
Boa parte das tensões estariam vindo do atual vice-presidente sênior de marketing, Markus Gerdemann, alguém que, segundo as fontes ouvidas pela Bloomberg, não tem experiência o suficiente para o cargo. Vindo de um período de meses na Funimation (antes de 2021, ele atuava no marketing de séries europeias originais da Netflix), ele trouxe consigo antigos colegas, apelidados por funcionários da Crunchyroll como o “clube dos meninos”. Seu comportamento também teria influenciado as debandadas de profissionais da empresa internacionalmente, pelo que pudemos apurar.
Escolhas equivocadas e aparente desleixo por parte de Gerdemann teriam provocado mal-estar com as produtoras do Japão. Entre os casos destacados, teria havido uma insatisfação por parte da Toei em relação à orquestra de One Piece durante a Comic-Con de San Diego. O navio dos Chapéus de Palha, que é marca desse tipo de apresentação, não estava bem iluminado e tornava sua visão difícil para o público. Na ocasião, Gerdemann era o produtor responsável pelo evento.
Um título da última temporada foi diretamente influenciado por uma escolha sem explicação por parte de Gerdemann. Em outubro, e-mails internos foram enviados para que os profissionais não promovessem mais o animê Dan Da Dan, simplesmente o título de maior projeção do período. Isso vai de encontro com a estranha estreia da versão dublada da série na Crunchyroll, que não teve qualquer tipo de divulgação.
“Devido às discussões de aquisição em andamento, decidimos não nos inclinar mais para a promoção de Dandadan” — é o que estaria escrito neste e-mail. Vale lembrar que o animê também teve exibição simultânea pela Netflix (guarde esse assunto para o próximo tópico), chegando a ser o segundo título não falado em inglês com maior audiência na plataforma, e segue há 11 semanas no top 10 mundial. O declínio por parte da Crunchyroll na promoção com razão irritou a Toho, tradicional produtora que adquiriu este ano o estúdio Science SARU, responsável pela animação.
Uma fala recente que reflete o mesmo comportamento visto com Dan Da Dan diz respeito a outro título de “grife”: Dragon Ball DAIMA. Em entrevista ao canal Totally Not Mark há 3 semanas, o ex-funcionário da Crunchyroll, Miles, comenta que, apesar da plataforma ter direito à exclusividade de uma semana em relação às outras demais principais exibidoras (Max e Netflix), ela teria parado de divulgá-la simplesmente porque o público que assiste na Netflix deve ser maior — como a plataforma mais famosa não tem exclusividade, ela também não engaja em sua divulgação. Miles trabalha atualmente no Anime Trending, e presta assessoria a empresas japonesas.
Outro ponto, dessa vez relacionado a um descontentamento entre Shogakukan e Shueisha, duas das maiores editoras do Japão, está no fato de que os produtos licenciados pela Crunchyroll não teriam passado pela aprovação completa antes de serem postos à venda (a reportagem não deixa claro se a empresa teria passado por todas as etapas e talvez ignorado certos pontos). Autores de algumas obras, inclusive, estariam chateados com a forma com que alguns de seus personagens foram utilizados.
Para completar a bola de neve dos atritos, o RH teria recebido uma série de reclamações contra Gerdemann, alegando, entre outras coisas, um ambiente hostil e machista. O suposto sexismo do vice-presidente de marketing teria passado por investigação interna, que acabou descartando as reclamações — não houve comentários nem dele nem da Sony sobre o caso.
O futuro está no público casual?
O artigo da Bloomberg abre relembrando que a aquisição da Crunchyroll, que movimentou 1,2 bilhão de dólares, superficialmente parece positiva. Desde a fusão, a plataforma de nicho viu seu público triplicar para 15 milhões de assinantes, número que a empresa projeta aumentar bastante, com uma meta interna de ter 25 milhões de assinantes até o fim de 2025 (iniciativa chamada internamente de “25 por 25”).
Esse objetivo, no entanto, parece inflado e inatingível para as fontes ouvidas pela agência. Ele seria baseado apenas em um desejo da gerência, não tendo respaldo de números reais. Das seis regiões que possuem atuação da Crunchyroll, apenas a América Latina teria cumprido a meta de novos assinantes na segunda metade de 2024 — o que infere que nem os Estados Unidos, o maior mercado da plataforma, está batendo a meta.
Investimentos pesados na Índia e no sudeste asiático ocorrem pela Crunchyroll desde 2022, e o mercado chegou a representar a 2ª posição no ranking da empresa (em 2024, o Brasil ocupou o posto, segundo divulgação feita durante a CCXP). A meta ousada agora seria a de triplicar essa fatia do público para o ano seguinte (uma mensalidade de apenas 1 dólar está sendo cobrada na Índia, valor que dificilmente representaria lucro na ponta), o que conflita com a aparente taxa de cancelamento do serviço.
Em um documento interno acessado pela Bloomberg, a Crunchyroll teria como meta descer a taxa de evasão de seus assinantes para 8,5% — isso mostra que, atualmente, essa taxa seria maior. O número é bem acima da média do que se vê no mercado de streaming, que teria uma taxa de cancelamento no patamar de 5% em outras plataformas.
Segundo Orina Zhao, da empresa especializada em dados Amphere Analysis, existe um crescimento notável no público que assiste animês casualmente, ou seja, aquele que assiste a alguns títulos e pode encontrá-los em plataformas de catálogos mais amplos, como Netflix ou Disney+. Entretanto, a mesma pesquisa mostra que o chamado público “hardcore”, o fã de animê que justifica uma plataforma de nicho, não apresentou mudanças.
Títulos expressivos, como JoJo’s Bizarre Adventure, Tokyo Revengers e Dungeon Meshi, foram parar com temporadas exclusivas nas grandes plataformas. Essa concorrência teria aumentado o valor das licenças de animê no mercado, com Netflix e outras plataformas grandes sendo preferidas pelos estúdios de maior calibre, como os já citados Toei e Toho. Embora a Sony/Crunchyroll justifique a divisão de alguns de seus grandes títulos, como Demon Slayer, com mais plataformas para ampliar o público fã, o aumento dos valores das produções não fecharia a conta do serviço de nicho para sair no lucro.
Interessados nesse público mais amplo, os estúdios japoneses teriam voltado a atenção para as plataformas diversas, como é o caso da futura nova série animada de One Piece, que será exibida exclusivamente pela Netflix. Colaboram com essa “preferência” os casos supracitados de insatisfação com o atual comando da empresa da Sony, e também de uma desconfiança — pessoas da indústria japonesa de animação acreditam que relatórios da Crunchyroll sobre vendas para divisão de lucros não são confiáveis.
A falha em lidar com o público de nicho também seria visível em outras divisões da Crunchyroll, tidas inicialmente como uma forma de reter seus assinantes e aumentar a receita. Iniciativas feitas na área de jogos, como a Crunchyroll Games e o Game Vault, não estariam dando resultado (títulos receberam muitas reclamações pela falta de atualizações, além de não passar de 5.000 dólares em vendas via iOS e Android no último mês).
A área de venda de produtos também estaria declinando após a compra do Right Stuf. A ideia por traz dessa compra seria de certa forma preencher a atenção de consumidores durante temporadas de desinteresse (quando assinantes não estivessem a fim de títulos do momento), comprando mangás ou outros itens com desconto a depender do nível da assinatura. Usuários teriam ficado decepcionados com a venda da loja, ainda mais depois que a Sony teria mandado remover itens considerados “picantes”, que representavam por volta de 5% da receita. Além do encolhimento das vendas, funcionários da linha do comércio eletrônico e também dos videogames foram demitidos.
Uma pesquisa recente feita pela Polygon nos EUA aponta que 76% dos fãs de animê da chamada “geração Z” consomem seus títulos favoritos pela Netflix, contra 58% daqueles que assistem via Crunchyroll. Embora a plataforma da Sony não tenha comentado os assuntos espinhosos com a Bloomberg, manteve-se no posto de que segue alimentando um canal de conteúdo e experiências para atender fãs de animê, com um retorno além das expectativas financeiras, bem posicionada e crescendo junto com a demanda global do nicho. Sua equipe teria crescido 27% (não está claro se o time vindo da Funimation entrou nessa conta), e mais de 100 vagas estariam disponíveis em seus escritórios globalmente.
Por aqui, um movimento que gerou atenção foi a desistência da Crunchyroll em lidar com o público de nicho em sua ausência no Anime Friends no meio do ano (o maior evento para fãs de cultura pop do Japão na América Latina). À primeira vista, seu investimento completo em outra convenção, a CCXP, que envolve um leque mais amplo de fãs no fim do ano, demonstraria uma intenção de chegar também a esse espectador casual. Com a reviravolta da compra do AF pelo Omelete Group, dona da CCXP, 2025 tende a ser um ano no mínimo curioso para se observar os passos da plataforma da Sony. A que ponto isso custará a saúde de seus funcionários, também há de se observar.
Com informações relatadas pela Bloomberg, e adicionais pelo Totally Not Mark
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