Meses atrás, o portal Consumidor Moderno divulgou uma pesquisa feita pela Nielsen Media Research que aponta que o Brasil é líder mundial em número de influenciadores digitais (leia aqui). Só no Instagram, são mais de 10,5 milhões de influenciadores.
Isso pode ser visto como um reflexo dessa atual realidade ultra conectada do resto do planeta. Difícil alguém hoje não existir online. Em termos profissionais e sociais. É uma evolução drástica dos desejos de ser visto, lido, ouvido que rolavam no início da explosão da internet nos anos 2000. E que rende uma porção de discussões que, anos atrás, ninguém poderia prever, relacionadas à privacidade, segurança digital, saúde mental, e sobre como pessoas constroem personas online, que nem sempre batem com seus “eus” offline, em busca da aceitação de um público que elas sequer sabem quem são de verdade.
Um dos animês mais interessantes — e divertidos! — de 2024 parte dessas discussões. Mayonaka Punch foi produzido pelo estúdio P.A. Works, dirigido por Shu Honma e com roteiro de Hideaki Shirasaka, indo ao ar na temporada de verão lá no Japão (entre julho e setembro). Em março, possivelmente em paralelo com a produção da animação, foi iniciado um mangá escrito por Doga Toko Shojo e desenhado por Tomomi Usui, publicado na revista seinen Young Ace, ainda em andamento, com 1 volume fechado até então.
A trama é dessas que só poderia existir mesmo hoje em dia. Uma mulher chamada Masaki Sonoue é cancelada na internet após se desentender e brigar com suas duas colegas de canal no Newtube (a versão do YouTube presente aqui). Ela é escrutinada online, e as outras integrantes do canal, com quem ela dividia uma casa para gravarem juntas os vídeos, se mudam e decidem recomeçar sozinhas, anunciando isso numa transmissão ao vivo, surfando na onda de cancelamento.
Masaki sofre com comentários de ódio diários, não consegue retomar sua vida online, e desenvolve problemas mentais por conta disso. Mas as coisas começam a mudar quando ela conhece Live, uma vampira que é obcecada por ela. Então, elas fazem um acordo: Masaki irá produzir um canal com Live no Newtube. E se esse canal atingir 1 milhão de assinantes, ela deixará que a vampira tome seu sangue. A moça se muda para a mansão luxuosa onde Live vive com outras vampiras, e juntas, diariamente (ou noturnamente) elas aprontam diferentes ideias para fazer o canal bombar.
Mayonaka Punch é dessas obras que, por baixo de uma primeira camada de comédia, discutem uma série de temas extremamente importantes e relevantes para a atualidade, e ela faz isso com um tino artístico que nos envolve em tais questionamentos sem parecer algo professoral, palestrinha, escolha o termo que melhor preferir.
O roteiro vai a fundo em como funciona o universo de produção de conteúdo na internet. Ele mostra como, para que um vídeo de alguns minutos vá ao ar, são necessárias horas e horas de dedicação, que vão desde o planejamento das ideias, de montar os cenários, ajeitar os equipamentos, até, efetivamente, às gravações dos vídeos, e todo o pós, com noites e noites mal dormidas para as edições desses vídeos.
Isso tudo para chamar a atenção, agradar e, basicamente, torcer para que o público abrace essas ideias, compartilhe, comente, dê like e todas essas coisas que, hoje em dia, estamos tão acostumados a ouvir. Mas se o que vem desse mesmo público não é positivo, todo esse esforço pode ir por água abaixo. E o animê ilustra isso muito bem ao, literalmente, dar vida aos comentários negativos que a protagonista recebe quando tenta retomar sua vida online após ser expulsa de seu canal, ou quando descobrem que é ela quem está por trás do canal das vampiras. As mensagens ruins a envolvem como um espírito ruim, e isso é agoniante de assistir.
Também há uma outra metáfora com a realidade que é extremamente interessante de acompanhar. Quando Masaki começa o canal com as vampiras, ele é focado em produzir conteúdo explorando as capacidades dos poderes das vampiras, com elas voando pela noite e fazendo outras coisas do tipo, mas como se fosse fake. E isso viraliza quase que imediatamente. Se continuassem investindo nisso, chegariam a 1 milhão de inscritos muito rápido. Isso pode ser lido como um paralelo com influenciadores, em YouTube, Instagram, TikTok, cujo conteúdo é mostrar o quão abastadas suas vidas são. Não há algo realmente produzido, nem uma ideia criativa, mas sim um diário de suas viagens caras, roupas de marcas luxuosas, casas enormes de suas famílias e etc.
Por motivos de plot, elas precisam apagar esse canal, pois não podem correr o risco de expor que existem vampiras ali. E então, passam a apostar em vídeos mais normais. E o crescimento desse novo canal, com suas versões “não vampiras”, é bem mais lento que o anterior. Isso expõe uma realidade triste nossa de que o interesse de boa parte das pessoas não está em assistir a conteúdos mais criativos, e sim em acompanhar, como num reality show, pessoas fazendo aquilo que elas não podem fazer. No animê, vampiras sendo vampirescas pela noite. Fora da tela, gente rica gastando dinheiro enquanto nós, trabalhando muito mais, não conseguimos 10% daquilo.
Mayonaka Punch debate também uma outra pauta bem incômoda, e que parece ter se tornado tabu hoje em dia: a de que o cancelamento diz muito mais sobre o desejo de sangue de indivíduos isolados, geralmente pertencentes a alguma minoria, que temos como massa na internet, do que sobre um esforço em condenar comportamentos considerados errados perante qualquer um.
Há uma teoria da comunicação chamada Espiral do Silêncio. Proposta em 1977 pela cientista política Elisabeth Noelle-Neumann, muito resumidamente, ela descreve a ideia de que as pessoas omitem suas opiniões quando elas são diferentes, conflitantes, das opiniões dominantes socialmente. Fazem isso por medo de sofrerem isolamento, de serem zombados, de serem criticados. Consequentemente, ao se omitirem, acabam “indo com a galera”. E aí, outras pessoas, que talvez tivessem essas mesmas opiniões que são conflitantes com as dominantes, também deixam de expor elas, de modo que isso cria uma espiral silenciosa, onde as tais opiniões dominantes, na verdade, só são dominantes pela falta de embate.
O animê mostra que coisas ocorreram nos bastidores do canal anterior da Masaki, que a briga que gerou a cisão não veio do nada. E mostra depois que, na verdade, ela retoma a amizade com as outras integrantes. Mas a resposta online do público não considera nada disso. Uma série de pessoas passa a tratá-la com ódio, tanto online, quanto offline, e a manada vai junto, sem elaborar internamente que as coisas nos bastidores podem ser mais complicadas do que imaginam ao assistir a vídeos na internet.
E há uma passagem que ilustra isso brilhantemente. Ela encontra uma usuária que frequentemente diz coisas detestáveis contra ela nos vídeos. E a reação da menina ao encontrar Masaki, logo após soltar algo bem negativo na caixa de comentários pelo celular, é de se emocionar e dizer que é sua fã. Essa é uma parábola incrível sobre como muitas pessoas se comportam online como trolls, mas não se garantem ao vivo. Quantos de nós teríamos a coragem de dizer na cara das pessoas aquilo que falamos sobre elas escondidos por trás de um perfil de rede social?
Por fim, também é muito interessante que usem vampiras para compor essa história. Para além das piadas envolvendo isso no roteiro, é possível entender tudo como uma metáfora, justamente, aos hábitos de produção e consumo de conteúdo online. Enquanto produtores de conteúdo são vampiros de atenção, de tempo de tela, e das possibilidades financeiras e sociais que seus vídeos, fotos e textos são capazes de sugar, os consumidores são vampiros das imagens desses produtores, do que eles podem propiciar de bom e de ruim, e deles como norte para comentários e alvos de suas réguas morais. Um suga o outro e assim a roda da internet gira.
Mayonaka Punch é um animê excelente, com uma história que é ao mesmo tempo divertida e tocante, recheado de passagens legais, de personagens extremamente carismáticas, e que vai bem mais fundo em seus questionamentos do que a imagem inicial de puro entretenimento pode deixar passar. Uma das grandes obras de 2024.
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Mayonaka Punch é exibido legendado pela Crunchyroll. O serviço fornece um acesso de imprensa ao JBox.
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