Sou defensor de que não há maneira de separar a arte do contexto político e social no qual ela é produzida e solta para o mundo. Pois artistas, para a produção de suas artes, ainda que elas sejam as mais surrealistas possíveis, necessitam de um ponto de reconhecimento com a nossa realidade para que elas façam sentido. Ou seja, toda arte é política, mesmo sem tentar ser.
Mas há artes que são propositalmente mais políticas. Dessas que se aproveitam do “momento”, do “estado das coisas”, para dentro de sua narrativa estabelecerem uma crítica contundente ao que acontece. Por exemplo, a série O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), de 2017, que critica a crescente de pensamentos ultrarreacionários camuflados de cristianismo. O filme Tempestades D’alma, de 1940, que foi praticamente uma carta aberta do diretor Frank Borzage clamando pela entrada dos EUA na Segunda Guerra. Ou a história em quadrinhos V de Vingança, de 1982, escrita por Alan Moore e ilustrada por David Lloyd, que pode ser lida como uma parábola anti-Thatcherismo.
E é também o caso de Metallic Rouge, animê de 2024 do estúdio Bones, em 13 episódios, com direção de Motonobu Hori e roteiro de Yutaka Izubuchi e Toshizo Nemoto. A trama se passa num futuro distante, após uma guerra da humanidade com uma raça alienígena chamada Usurpadores. A partir dos avanços tecnológicos utilizando os conhecimentos de uma outra raça alienígena, os Visitantes, são criados os Neans, androides de semelhança impressionante com humanos. Mas há um porém: os Neans não vivem como humanos, eles são segregados, subjugados, tratados como cidadãos de segunda classe, sendo também internamente aprisionados a partir das Leis de Asimov para que permaneçam sempre subservientes.

Imagem: Bones/Reprodução
Nesse contexto, a jovem Rouge Redstar, uma Proto-Nean que não tem nela as Leis de Asimov, junto de sua parceira, Naomi Orthmann, são enviadas numa missão para assassinarem os outros nove Proto-Neans, isso a partir de motivações escondidas que a própria Rouge não entende bem o porquê de obedecer. Os Proto-Neans, além de não terem as Leis de Asimov, possuem poderes de combate gigantescos. E aí, conforme sua missão vai avançando, e conforme ela tem mais contato com a humanidade e com outros Neans, Rouge começa a questionar se ela tem domínio sobre suas ações, ou se é só mais uma engrenagem naquele sistema opressor que pode a estar usando para enfraquecer sua própria espécie.
A tradição de animês mecha envolvendo contextos políticos, principalmente de guerras, e da maneira como a guerra mina a inocência de jovens, é grande. Tetsujin 28-go, também conhecido como Gigantor (ou ainda Homem de Aço na adaptação animada exibida no Brasil), mangá de 1956 escrito por Mitsuteru Yokoyama, trazia um robô controlado remotamente, justamente, por uma criança. Mazinger Z, de Go Nagai, em 1972, traz um adolescente controlando o robozão para enfrentar os vilões. Mobile Suit Gundam, de 1979, idem, com o protagonista, Amuro, aos poucos perdendo seu brilho em meio à guerra. E Neon Genesis Evangelion, de 1995, é ainda mais afiado ao traçar uma alegoria sobre as inseguranças da adolescência através do personagem principal, Shinji. Os exemplos seguem.
Metallic Rouge, então, segue nessa toada, e podemos correlacionar ao animê um tema bastante importante da atualidade: a questão do imigrante na Europa e nos Estados Unidos, e o modo como essas pessoas são desumanizadas. Claro, a narrativa não mostra isso explicitamente, mas utiliza da maneira como Neans são tratados para tratar desse assunto. Afinal, a ficção-científica usa de um futurismo fantasioso para abrir as feridas atuais da atualidade em que elas são escritas.
Neans são androides de aparência quase idêntica a de humanos. O que os difere são alguns riscos na pele, além de um furo para que eles se alimentem com um tipo de líquido energético. Mas isso já é o suficiente para que eles sejam destratados, destacados do resto. Logo no começo, há uma cena bem impactante, onde dois humanos resolvem roubar o líquido de uma Nean no ambiente de trabalho, e o resultado é a morte do namorado dela, que lhe dá seu alimento, mas acaba sem energia por conta disso.

Imagem: Bones/Reprodução
Também é mostrado que Neans são utilizados como mão de obra para a terraformação de Venus, pois conseguem, de maneira angustiante, torturante, aguentar os climas desumanos do planeta. Eles já nascem adultos e são colocados lá para trabalhar, sem quaisquer garantias de futuro, ou salários minimamente adequados. E quando não servem mais, são jogados em campos de concentração, onde o Estado não intervêm para ajudá-los, apenas para tratá-los como prisioneiros.
O roteiro ganha um contorno de complexidade interessante ao colocar, justamente, uma Proto-Nean, a Rouge, para lutar contra seus iguais. Não entrarei em mais detalhes para poupar os spoilers, mas a ideia de usar alguém de minoria como um token para enfrentar a própria minoria faz com que, a cada episódio, a crescente de angústia aumente. Você percebe que algo ali está errado, a protagonista também percebe, mas não consegue lidar adequadamente. Pois foi programada para isso, foi programada para atacar a quem ela mesma é, em prol de uma elite humana (que aqui pode ser lida como uma elite branca, ou uma elite masculina, as interpretações estão lá).
Em tempos onde vemos como o tratamento de imigrantes em países de primeiro mundo tem se desenrolado, Metallic Rouge ganha ainda mais relevância. Nem precisamos entrar em estudos muito complexos para isso. Por exemplo, podemos usar o caso recente da atriz espanhola Karla Sofía Gascón, que viralizou na internet por dizer que a Espanha estava sendo invadida por mulçumanos. Ou toda a saga do Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, que tem feito um esforço enorme para deportar estrangeiros ilegais como se fossem animais acorrentados, sendo que há uma tradição de tempos onde esses estrangeiros ilegais são empregados de modo quase escravizado para que a economia daquele país cresça. Ou mesmo todo o jeito como as mortes causadas por Israel na Faixa de Gaza e em territórios vizinhos é vista como aceitável por boa parte do planeta.
Metallic Rouge trata desses assuntos, mas sem ser professoral, sem obviedades, e em meio a uma narrativa de ação, com robôs brigando em tela, clima de thriller policial e tudo amarrado num bom-humor delicioso. Se tiver passado despercebido enquanto era exibido no ano passado, sugiro o resgate em uma maratona. Vale a pena.
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Metallix Rouge é exibido dublado e legendado pela Crunchyroll. O serviço fornece um acesso de imprensa ao JBox.
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