Recém-lançado no Brasil, Vida à Deriva traz à tona toda a efervescência criativa que culminou na criação de um novo jeito de se fazer quadrinhos, o gekigá. O que a brilhante história de Yoshihiro Tatsumi não conta com detalhes é o surgimento daquela que melhor viria a representar o revolucionário movimento surgido entre os anos 1950 e 1960: a revista Garo.
O antológico periódico mensal da editora Seirindo transformou-se num verdadeiro sinônimo do gekigá, embora o seu foco fosse a cena de mangás underground em geral. A revista não só se consolidou como a maior referência dos quadrinhos japoneses de vanguarda como também foi fundamental para abrir espaço às mais diversas poéticas.
Fundada em 1964 por Katsuichi Nagai, a Garo foi encerrada em 2002, tendo sido responsável por abrigar grandes nomes da 9ª arte (muitos revelados pela própria revista). A primeira história a ser seriada na Garo foi A Lenda de Kamui, de Sanpei Shirato. Carregada de uma mensagem clara contra a sociedade de classes e o autoritarismo em voga no Japão, Kamui rapidamente caiu nas graças da comunidade universitária, que se projetava como o principal público da revista.
O Brasil infelizmente conhece pouco das histórias da Garo. Suas traduções são bem mais proeminentes em países como a França e os Estados Unidos. Pensando nisso, nós do JBox, em parceria com o Fora do Plástico, fizemos uma seleção de títulos publicados na revista que poderiam ser lançados em solo brasileiro.
Dividida em dois posts, a lista conta com artistas já publicados por aqui, como os mencionados Yoshihiro Tatsumi e Sanpei Shirato — além de Yoshiharu Tsuge e Kan Takahama —, mas é composta por uma maioria imensa de autores ainda inéditos.
#1. Nejishiki
de Yoshiharu Tsuge | volume único | 1968
Em Nejishiki, Yoshiharu Tsuge apresenta uma série de histórias curtas de verve surrealista. A que empresta o título à coletânea já nasceu como um marco na história do mangá (considerada revolucionária do ponto de vista formal) e narra um episódio envolvendo um homem de traços caricaturescos. Seu braço é “mordido” por uma água-viva e começa a jorrar sangue. Desesperado, o homem sai do mar em direção à vila litorânea por ele desconhecida a fim de encontrar um médico que possa estancar a sua ferida.
Os diálogos deste e de outros contos criam situações absurdas, assim como a mistura de figuras intencionalmente disformes e cenários absurdamente detalhados, de inspiração realista. O interessante desses contos é a forma não-usual de se narrar uma história. Fica evidente a tentativa de experimentação estética, já que o autor não pretende construir uma trama com início, meio e fim, apenas combina cenas de modo a não resolvê-las a medida em que os quadros avançam.
Essas histórias de alguma maneira antecipam algo daquilo que seria realizado em O Homem Sem Talento, onde a incapacidade de se compreender o mundo exterior — vivida pelas personagens e repassada ao leitor, na própria forma — é a grande causadora das inquietudes da subjetividade.
#2. The Pits of Hell (Jigoku ni Ochita Kyoushi Domo)
de Ebisu Yoshikazu | volume único | 1981
Ebisu Yoshikazu é possuidor de uma obra reconhecidamente grotesca. Em The Pits of Hell, o leitor tem a oportunidade de se deparar com toda a expressividade e ousadia do estilo heta-uma, termo criado a partir das palavras heta e umai (respectivamente “ruim” e “bom” em japonês) e que pode ser traduzido como “ruim mas bom”.
Nas histórias que compõem a coletânea, a representação paródica da vida cotidiana no período Showa (1926-1989) faz-se notar de modo visceral. O forte desse gênero também não é a profundidade das narrativas do ponto de vista do enredo (cujas tramas são quase sempre banais), mas a criatividade excêntrica de seu autor, geradora de situações envolvendo todo tipo de bizarrice.
Incorporando elementos da pop-art e referências de tokusatsu, The Pits of Hell aposta no surreal e no escatológico para chocar o leitor, subvertendo muito dos elementos convencionais do mangá e do próprio gekigá.
#3. Kinderbook
de Kan Takahama | volume único | 2002
A criadora de O Último Vôo das Borboletas e A Lanterna de Nix — ambos publicados pela Pipoca & Nanquim, no Brasil — teve uma passagem pela Garo antes do encerramento da revista, em 2002. Naquele ano, Kan Takahama publicaria uma série de contos que posteriormente seriam reunidos na coletânea Kinderbook.
Com o inconfundível estilo do movimento nouvelle manga (“novo mangá”, em francês), o sombreado típico de Takahama dá vida a 10 histórias que não possuem ligação direta umas com as outras, a não ser pelo fato de que todas são protagonizadas por personagens femininas.
As narrativas se debruçam sobre diversas fases da vida, indo desde o drama de uma criança que vê sua família se desmanchar, até a história de uma artista idosa em processo de aposentadoria. De modo sensível, a autora trata de temas e situações delicadas, e ainda vê espaço para se projetar em diversas passagens de teor autobiográfico.
#4. A Lenda de Kamui (Kamui Den)
de Sanpei Shirato | 21 volumes | 1964-1971
A Lenda de Kamui é o único da lista que já foi publicado no Brasil. A série passou por aqui em 1993, numa coleção bastante esquisita que apresenta alguns poucos capítulos do mangá em 3 volumes de aproximadamente 120 páginas. Assim como Lobo Solitário, da dupla Kazuo Koike e Goseki Kojima, a obra é um dos marcos do gekigá, mas se distingue pela evidente mensagem antissistema expressa na obra pelo seu criador, o marxista Sanpei Shirato.
A história narra os passos de Kamui, um jovem que deseja se tornar ninja para se livrar da vida miserável. Nascido entre os mais oprimidos pela hierarquia social japonesa, nas primeiras décadas do período Edo (1603-1868), Kamui consegue alcançar seu primeiro objetivo, mas acaba percebendo que a ética ninja é apenas mais um dos mecanismos para reiterar a dominação das camadas altas da sociedade sobre as mais pobres.
Como numa recusa a participar em favor dos poderosos na luta de classes, a personagem decide abandonar o seu clã e passa a viver como um nukenin, um ninja renegado que aspira por liberdade.
#5. A Single Match (Match Ippon no Hanashi)
de Oji Suzuki | volume único | 1985
“Angustiante e evocativo”. Foi assim que o crítico estadunidense Tom Spurgeon definiu A Single Match. E não há como expressar melhor a sensação transmitida ao leitor através dos quadros melancólicos pintados por Oji Suzuki. As histórias que constituem o encadernado se direcionam sempre ao onírico, única dimensão aparentemente capaz de dar vazão às sensações expostas em cada conto.
Num deles, um menino começa a delirar após pegar um resfriado e clama pela presença de um irmão mais velho que sequer existe. Noutro, acompanhamos o sofrimento de uma criança que não recebe a atenção da mãe. Os plots singelos escondem na verdade uma alta capacidade de representação do plano emotivo das personagens. O emprego de fundos pretos e figuras compostas por “rabiscos” corrobora a atmosfera taciturna dos painéis, alguns formando verdadeiras gravuras em papel e nanquim.
#6. Talk to my back (Shin Kilali)
de Murasaki Yamada | volume único | 1981-1984
Enquanto os sonhos vendidos à classe média suburbana do Japão começam a se desintegrar em face aos problemas inerentes à modernização capitalista, as lentes de Talk to My Back se voltam para uma família que vive nos arredores de Tóquio, num complexo de apartamentos.
Com um evidente viés feminista, a mangaká Murasaki Yamada coloca no centro da narrativa uma mulher que, reduzida à função de “dona de casa”, vê-se num conflito interno ao perceber-se infeliz por seguir o modelo de vida imposto pela sociedade da época. Embora o marido seja adúltero, é Chirari quem se coloca na posição de indecente, pois não consegue se sentir adequada ao padrão de felicidade conjugal então estabelecido.
#7. Itaitashii Love
de Kiriko Nananan | volume único | 1995
A autora de Itaitashii Love é uma das mais interessantes do gekigá tardio. Com Itaitashii Love, Kirino Nananan trata de diversos temas que gravitam em torno das relações afetivas — em sua maioria degradadas pelas imposições da vida moderna.
Em histórias sobre adultério e prostituição, o ponto alto deste mangá está nos diálogos e nas reflexões feitas por cada personagem a respeito dessas relações, o que na maioria das vezes resulta em profunda angústia. A arte da autora se filia na tradição das fashion magazines: a proporção dos corpos segue uma lógica própria, visando destacar as roupas e a fluidez dos movimentos.
Do ponto de vista visual, os quadros e painéis são um prato cheio para os leitores de séries como Paradise Kiss e Helter Skelter.
Esta foi a primeira parte da nossa seleção de títulos para conhecer o vasto universo da Garo. Na próxima quinzena, publicaremos a continuação da lista, com mais 7 obras fundamentais para conhecer os principais autores e tendências projetados pela revista.
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