Em fevereiro deste ano, expus uma falha vergonhosa minha como consumidor e amante de mangás: nunca tinha lido nada do autor Junji Ito. Febre editorial no Brasil, um número alto de obras do mangaká vem sendo publicado por aqui. Infelizmente, calhou de eu pegar uma das piores logo como ponto de partida: o péssimo Sensor (leia minha crítica aqui).
Publicação bem recente de Ito, Sensor me desagradou bastante à época, e deu a (falsa) sensação de que ele não fazia jus à alcunha de mestre do horror. Ele faz. E isso pode ser comprovado ao retornar à sua “fase áurea” através de Contos Esmagadores, coletânea com histórias originalmente publicadas entre 2002 e 2006 nas páginas da revista Nemuki, da então editora Asahi Sonorama (atualmente Asahi Shimbun Publications).
Contos Esmagadores faz parte da Masterpiece Collection de Junji Ito, uma coletânea de 12 volumes com alguns dos trabalhos mais aclamados do autor, que está sendo publicada na íntegra — porém fora de ordem — aqui no Brasil pela editora Pipoca e Nanquim (eles explicam tudo nesse vídeo aqui). Como fio condutor das histórias presentes na coletânea, é explicado que, em comum, todas têm algo que “esmaga” os personagens, literal ou figurativamente.
Particularmente, considero essa uma definição aberta demais ao que os contos trazem. Pois ao pensarmos em algo sendo esmagado, temos em mente um momento de violência extrema que, a partir dele, a trajetória dos personagens é modificada. E não é isso que ocorre em todos os contos.
Alguns deles nos apresentam o esquentar de uma situação, seu crescente perturbador, não uma mudança imediata. Diria que, em comum, na verdade, eles carregam a criatividade de Ito em construir narrativas grotescas, tanto a partir de premissas que, por si só, já são perturbadoras, quanto por outras que sequer imaginaríamos que poderiam causar horror.
São 14 histórias em que o mangaká mostra o quanto domina a narrativa gráfica, e o quanto domina a linguagem do “conto” nela, onde em poucas páginas é necessário elaborar um universo, desenvolver a trama e terminá-la de um jeito que ela permaneça na cabeça do leitor. O mangá é espetacular e nos leva ao êxtase a partir do quão deliciosamente desgraçado, esquisito e nojento consegue ser.
Dito isso, para essa resenha, é impossível que eu fale dos contos sem spoilers. Afinal, são histórias bem curtas e, para que eu me aprofunde nelas, preciso me desdobrar em tudo o que elas têm a oferecer. Falarei separadamente de cada uma, com a extensão de texto que elas rendem. Caso queira manter a surpresa ao ler pela primeira vez, sugiro que volte nesse post depois. Caso já tenha as lido, ou não se importe com spoilers, venha comigo na mesma ordem imposta pelo mangá.
01. A Escuridão que Suga Sangue
Uma estudante chamada Nami, após levar um fora, resolve que emagrecerá para chegar em uma beleza “ideal” e, assim, se vingar do rapaz que a fez sofrer. Como consequência, a menina desenvolve bulimia e anorexia. Nesse meio tempo, duas coisas acontecem: Nami passa a ter sonhos onde chove sangue e acorda com esse gosto na boca; e ela conhece Kazuta Tani, um garoto que estuda em sua escola, que tem por hábito deixar que morcegos chupem seu sangue. Ocorre que, secretamente, Tani fazia com que os morcegos alimentassem Nami com seu sangue enquanto a garota dormia. Daí os sonhos, daí o gosto na boca.
No Japão, histórias “de vampiro”, ou que envolvam sangue num geral, podem possuir um significado diferente de outras narrativas parecidas fora dele. Durante o feudalismo, na idade média, o Japão era dividido num sistema de castas sociais. Abaixo de qualquer casta, numa condição não humana, estavam os burakumin (部落民, “povo da aldeia”). Eram pessoas (ou “não pessoas”, considerando o pensamento da época) que viviam à margem da sociedade, em guetos, e lidavam com trabalhos considerados sujos — geralmente, envolvendo fezes, como limpar latrinas, ou sangue, como enterrar cadáveres ou coisas de açougueiro.
Daí, o sangue possui um significado de sujeira, de impureza não só física, mas moral, social, dentro da cultura japonesa. E isso é algo que costuma se refletir em narrativas nipônicas. Pense, por exemplo, em Tokyo Ghoul, ou no tropo de algum personagem sangrar pelo nariz quando está excitado.
Então, é muito interessante aqui como o Junji Ito reforça essa convenção ao utilizar o sangue como uma marca de corrupção. Tani é uma representação do impuro, do sujo, do errado, pois deixa que os morcegos suguem seu sangue. E Nami é corrompida por ele, pois os morcegos a marcam com sangue, mesmo sem o conhecimento dela.
O resultado é ótimo, com o autor levando a história numa crescente de agonia através da imagem da protagonista, que fica cada vez mais debilitada graças às doenças, chegando a um desfecho bizarro com desmembramento e “renascimento” através, justamente, do sangue.
2. Fantasmas do Horário Nobre
Nessa história, dois amigos, Keitsuke e Tsuguo, vão em um show de humor e se deparam com uma dupla curiosa, as comediantes Sasage e Azuki. A dupla apresenta uma performance formada por piadas que não têm graça e, inicialmente, apenas constrangem a plateia. Porém, com o passar do set, os espectadores começam a rir de maneira descontrolada, como se estivessem sob efeito de um encantamento. Menos Keitsuke, que percebe algo estranho ocorrendo ali e foge com seu amigo.
Ocorre que as duas, na verdade, utilizam espíritos que fazem cócegas em quem ouve suas piadas, por isso as risadas descontroladas, mesmo com trocadilhos tão ruins. E Keitsuke tem a habilidade de enxergar espíritos, por isso não se deixa ser afetado. O conto escala de modo que elas atacam os garotos e a mãe de Keitsuke, matando Tsuguo de rir. E então, se tornam a maior sensação da comédia do Japão.
Embora não tenha uma das tramas mais ambiciosas da coletânea, já que é basicamente uma perseguição e invasão num espaço limitado, Fantasmas do Horário Nobre consegue despertar asco em sua leitura. Pois é uma parábola sobre abuso e tortura. Tal como um estupro, onde a violência está em fazer mal através de algo que deveria trazer prazer, Ito usa o riso forçado aqui como um instrumento de desgraça. As comediantes levam as vítimas ao descontrole, literalmente matando algumas delas de “felicidade”. Não à toa, seus cadáveres têm o sorriso estampado no rosto.
3. Estrondo
Masaki e Mimura são dois jovens que fazem uma trilha na floresta. Durante a caminhada, contudo, as coisas ficam estranhas. A bússola deles dá defeito, seus celulares param de funcionar, e depois ouvem um barulho de água correndo. É então que eles se deparam com uma cabeça d’água, uma correnteza forte que ocorre num rio quando há uma tempestade grande, que carrega um vilarejo junto dela.
Mas do mesmo jeito imediato que a água surge, ela desaparece, deixando apenas um rastro seco por onde passou. No dia seguinte, a enchente volta a acontecer, levando novamente o mesmo vilarejo. Os dois sequer conseguem gravá-la numa câmera de vídeo. Então, após encontrarem um morador local, eles descobrem que isso é uma ilusão que se repete ao infinito, tem a ver com um desastre natural ocorrido naquele lugar anos antes, e se cruza com o passado de um dos rapazes, que nasceu por ali.
Pra mim, é a menos inspirada do mangá. É interessante observar como o autor cria um ambiente “Além da Imaginação” ao posicionar os personagens, vindos do “mundo real”, numa sucessão de fatos até que a loucura enfim aconteça. Só que o texto é direto demais e sequer assusta. Um conto bastante sóbrio e que nem permite que o autor explore seus desenhos grotescos.
4. Glicerídeo
Há um tropo recorrente que me agrada muito na tradição narrativa japonesa, o da “criança larva”. Resumidamente, tem a ver com a própria história de formação mítica do Japão, na qual o primeiro humano a nascer na Terra, na verdade, tem forma bestial, pois ele foi concebido através da iniciativa sexual da mulher e não do homem. Os pais, então, abandonam o bebê monstruoso, têm filhos humanos e seguem a vida ignorando a aberração que colocaram no mundo ao invés de lidar com ela.
É mais ou menos a partir desse tropo que Glicerídeo é montado. Temos aqui um lar bizarro, tanto pelo ambiente, quanto pelos moradores. O pai tem na casa uma churrascaria, mas não construiu o lugar com uma vazão segura para a fumaça produzida, de modo que as paredes, chão, teto, móveis e tudo mais são infestados de gordura. Isso afeta os filhos, Yui, que detesta ficar ali, e Goro, que desenvolveu uma dependência por gordura e passa os dias bebendo óleo.
Calha de Goro se transformar quase em um monstro, cheio de espinhas pelo corpo, se isolando e sendo odiado pelas pessoas por isso. E Junji Ito entrega através dele o melhor de seu trabalho nessa coletânea, produzindo cenas repugnantes. Há um segmento em que o moleque espreme suas espinhas na irmã que quase dá vontade de vomitar, tão nojentos são os traços.
A trama se desenrola prum desfecho que envolve canibalismo, morte, abuso e esse conceito de pais criando uma criança monstruosa para abandoná-la logo em seguida. É a história mais impressionante do tomo e possivelmente um dos pontos mais altos da carreira de Ito.
5. Os Fincados
Outro slow burn da coletânea. Do dia para noite, ocorrem casos onde pessoas vão para algum lugar e ficam parados em determinada posição. Inicialmente, a sociedade acha que são performances artísticas, até que essas pessoas passam a definhar até a morte. Esses são chamados de fincados. Para ajudar a essas pessoas e suas famílias, é criada a Associação Céu Azul, da qual faz parte a jovem Asano.
Mas calha de Asano se ver envolvida nisso mais do que gostaria quando seu chefe é fincado no apartamento dela. Daí, é descoberto que há um motivo para que essa galera esteja sofrendo isso, e ele não é dos mais nobres. Talvez esse tom mais moralista seja o que não deixe Os Fincados num mesmo nível de esperteza que demais contos na obra, mas o modo como Junji Ito constrói a trama em cima do mistério do que leva à situação dos fincados nós dá uma impressão de insegurança bacana, como se tudo fosse uma pandemia e não houvesse esperança para ninguém.
6. A Campainha de um Condenado
Os irmãos Kowa são aterrorizados por um espírito que os visita pedindo desculpas por, no verão passado, ter atacado a família deles na estrada. Junto de uma gangue de motociclistas, o cara assassinou o pai, deixou a mãe em estado vegetativo e arrancou um dos olhos do filho. Ele está na cadeia, impossibilitado de falar, mas os irmãos sempre recebem um telefonema dele e sua visita momentos depois. Até que começam a atacá-lo e esmagá-lo como forma de vingança.
Essa é uma história que mostra como a vingança, como pagar o mal com mal, é capaz de corromper mesmo vítimas de situações terríveis. Conforme executam repetidas vezes o algoz de sua família, os irmãos passam a encontrar prazer em tal ato. E o desfecho disso não é bom para ninguém. Junji Ito utiliza essas situações de extrema violência para entregar desenhos que exploram o quão repugnante isso pode ser aos olhos. Conto perturbador.
7. O Mistério da Casa dos Horrores
O mangá chega então em uma trinca de histórias envolvendo um personagem conhecido de Junji Ito, Souichi, o garoto que cospe pregos. Pra ser honesto, é o momento mais fraco da coletânea, mas ainda há destaques. No primeiro conto, apresentado como um adulto, Souichi é responsável por uma Casa dos Horrores que está instalada próxima de uma vila.
A narrativa de terror crescente acompanha dois garotos que entram no local e, através deles, tomamos noção do que ocorre ali. As coisas na casa, de início, soam meio fajutas, como se fossem cenários pobres de um parque de diversões. Mas a cada cômodo avançado, os meninos se deparam com algum humano em situação crítica. Então, descobrimos que essas pessoas são membros da família de Souichi, escravizados para servirem como atrações na Casa.
O último é o filho de Souichi, Binzo, em pior estado, com Ito o “monstrualizando” em seu traço para entendermos o quão terrível e ameaçador é o que vemos. No desfecho, é mostrado que a mãe da criança também é uma criatura monstruosa. Então, é possível perceber que Junji Ito retorna aqui ao tema da “criança larva”, com Binzo sendo a representação do “filho de um pecado”, só que com o direcionamento diferente: o próprio pai o utiliza como um monstro.
8. A Frente Avançada do Souichi
Continuação direta do conto anterior. Souichi leva a Casa dos Horrores para outro local, mas tem uma de suas irmãs procurando por ele e por sua família. A menina os encontra e a trama se desenrola com a mãe de Binzo retornando e se vingando de Souichi. Não é o momento mais inspirado do mangá, pois todos aqueles que poderiam causar angústia já haviam sido mostrados páginas antes.
9. O Animal de Estimação de Souichi
Ao fim do conto anterior, descobrimos que os eventos relacionados à Casa dos Horrores eram um sonho de Souichi. Novamente mostrado como um jovem aqui, acompanhamos o moleque com pregos na boca criando afinidade com o gato de estimação da família, Garon, chamado por Souichi de Koron.
Ocorre que essa predileção se dá por um motivo: o felino possui algumas capacidades demoníacas. E não fica explícito se essas capacidades são dadas ao bichano pelo moleque ou se ele já as tinha antes. Koron traz para casa, na boca, animais que parecem não ser dessa dimensão, consegue espalhar seus pelos de forma sufocante pelo ar e tem o poder de dar choque nos outros.
É uma história simples sobre um animal que deveria ser fofo sendo retratado como uma criatura bestial a cada nova situação revelada. O ponto de maior interesse está em observar as ações de Souichi e como Ito o desenha e enquadra como um humano totalmente anormal em comparação com os demais membros da família. Por vezes, a esquisitice nos comportamentos pode soar mais assustadora do que insetos vindos do inferno.
10. No Vale dos Espelhos Casados
Daqui em diante, o mangá volta a subir, com histórias mais elaboradas e realmente impactantes. Nessa, uma das mais esquisitas nele, acompanhamos uma rinha entre dois lados de um vilarejo na montanha onde os moradores têm uma habilidade agourenta no olhar. Para se enfrentarem, esses moradores espalham espelhos pelas ruas, telhados, paredes etc. Calha de um casal com uma mulher e um homem, cada um de um lado, se apaixonarem e terem esse amor proibido.
A cena com os dois transando gigantescos após determinados eventos na trama é um dos negócios mais inusitados de todo o gibi.
11. Não Quero Ser Fantasma
No caminho de casa, Shigeru encontra uma jovem, Misaki, em estado catatônico na floresta, com o rosto ensanguentado. Ao levá-la para o hospital, ele descobre que o sangue não é dela e que sequer há qualquer ferimento no corpo da garota. Num outro dia, ela vai até sua casa, se apresenta apropriadamente, e calha de os dois começarem um romance extraconjugal. Quando ele questiona o que Misaki viu nele, ela prontamente responde que gosta de se alimentar de espíritos e que Shigeru possui vários encostados nele.
O jeito como a história vai escalando aqui é delicioso. Ito mistura horror sobrenatural com novelão familiar dramático em poucas páginas. O desfecho com Misaki devorando a alma da falecida esposa grávida de Shigeru, e também do bebê que estava em sua barriga, é de embrulhar o estômago.
12. Acervo dos Devaneios
Nessa, temos uma parábola sobre TOC que leva o transtorno a níveis sobrenaturais. A história se passa em uma mansão que pertence a Goro Shirasaki, marido da narradora, Kouko. Na casa, há um acervo de 150 mil livros, sendo a maior parte de obras bem raras. O problema é que Goro desenvolve uma necessidade de decorar o conteúdo de cada um dos tomos, e as consequências disso são devastadoras.
O roteiro aqui trabalha numa espiral de loucura, com essa obsessão em decorar os textos escalando não só na fissura do marido, mas em eventos que fogem à normalidade do lado de fora dos livros. Os momentos onde criaturas, que não sabemos se existem mesmo ou se são parte de alguma loucura do personagem, aparecem são extremamente impactantes e mostram o quão impressionante Junji Ito pode ser em seus desenhos.
13. A Canção das Trevas
Um dos momentos mais agoniantes do mangá, e nem é pelos desenhos de Ito, mas pela premissa: uma música se torna “viral”, com as pessoas literalmente não conseguindo tirar ela da cabeça. Pode ser lido como uma metáfora para vícios, pode ser lido como uma crítica a como o mercado impõe de maneira quase “mágica” o sucesso de seus produtos culturais.
Mas independentemente de qualquer análise mais aprofundada, esse é um segmento terrível de se imaginar parte. Deve ser consenso de que não conseguir fugir de uma música de sucesso, goste ou não dela, quando se está na rua, ou quando algum vizinho resolve aumentar o som do rádio, é irritante. Porém, não conseguir parar de ouvi-la pois ela está literalmente dentro da cabeça… não é à toa a capa desse mangá.
14. Os Esmagados
História final e que dá razão ao título do mangá. Um grupo de pessoas passa a consumir um mel misterioso conseguido em uma floresta na América do Sul (não é especificado em qual país). O mel é como um néctar divino, sendo o negócio mais delicioso que essas pessoas colocaram na boca. Contudo, há uma regra: ele precisa ser lambido sem que isso seja percebido. No entanto, um a um, eles passam a ser esmagados por algo invisível, com suas carnes espatifadas como se fossem frutas podres na parede ou no chão.
Os Esmagados é novamente Junji Ito em seu ápice. A trama obsessiva, o desenvolvimento punitivo do roteiro, os desenhos que ilustram a nojeira de corpos prensados. Por cima, podemos interpretar essa história como um paralelo a vícios, com o grupo perdendo o paladar para outras coisas após tomarem do mel e arriscando suas próprias vidas ao beberem mais dele mesmo sabendo que poderão acabar esmagados. Mas se nos aprofundarmos mais, podemos ler essa história também como um símbolo às respostas mortíferas do planeta pela exploração de recursos naturais.
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Esta resenha foi feita com base em edição de Contos Esmagadores cedida como material de divulgação para a imprensa pela editora Pipoca & Nanquim.
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O cara é o Stepen King do mangá….obras incriveis.