Quem acompanhou a indústria de animês durante 2023, sabe que não foram poucos os animês que sofreram com adiamentos ao longo desse ano. Vários problemas foram atestados pelas empresas, incluindo com o COVID-19, só que alguns animadores relataram questões relacionadas com problemas de produção devido a diversos fatores, incluindo, claro, excesso de trabalho e falta gente que cobrisse essa cota. Bem, mais um dia dentro do mundo capitalista.
Ironicamente, um dos animês que mais sofreu com adiamentos durante o ano foi justamente uma das séries que mais se pôs a frente para criticar os problemas da sociedade capitalista. Sim, Zom 100 ou 100 Coisas para Fazer Antes de Virar Zumbi não se trata exatamente de mais uma história de terror usando mortos-vivos (ao menos não no sentido literal da coisa).
Zom 100 estreou em julho de 2023, mas, mesmo contando com apenas 12 episódios, foi finalizado apenas durante o Natal, no dia 25 de dezembro, quando saíram os três últimos episódios da série. Mas isso não quer dizer que o adiamento aconteceu só no final da produção.
O animê de estreia do estúdio BUG FILMS já estava sofrendo atrasos desde o quarto episódio e seguiu passando por isso até ser adiado indefinidamente. Mas isso não se dá pelo BUG FILMS ser novo, veja bem. Como comentado na sexta edição da coluna Sakuga no Hanashi, o estúdio é formado por uma equipe de alta qualidade e esse retrato era óbvio no próprio animê que, enquanto saía, conseguia entregar de forma quase milagrosa uma qualidade excelente.
Bom, a ironia de tudo isso foi vista com muita facilidade, principalmente porque, logo no primeiro episódio de 100 Coisas para Fazer Antes de Virar Zumbi, o que acompanhamos é o protagonista Akira Tendou sofrendo com excesso de trabalho na empresa em que estava, lugar onde “vivia como um zumbi”.
Mas, quando chegam os zumbis de verdade e fazem com que forçadamente ele se livre daquele emprego, finalmente Akira se sente verdadeiramente livre. Com a chegada dos monstros, o mundo de Akira fica literalmente mais colorido quando os zumbis aparecem, depois de uma metade inteira do episódio inicial completamente sombria. Já que falei que é tudo muito irônico? Pois é!
Em seu decorrer, o maior ponto de Zom 100 não deixa de ser essa crítica. Ao longo do animê, enquanto consegue novos companheiros, Akira conhece diversas pessoas que, por estarem presas aos seus empregos, não conseguiam verdadeiramente aproveitar a vida.
Até quem parecia estar bem com a vida mesmo com as imposições capitalistas, logo descobríamos que era tudo uma farsa criada para se tentar viver como uma boa figura na sociedade, como é com Kencho, melhor amigo de Akira.
Já através de Shizuka, outra das protagonistas da história, observamos o quanto a pressão para fazer alguém se encaixar nos moldes desse mundo pode acabar com uma pessoa, incluindo com seus objetivos pessoais e até mesmo transformando sua personalidade em algo completamente diferente do que era, apenas pelo bem do que “é certo”.
Apesar de parecer meio clichê representar toda essa crítica social dentro de um universos de zumbis, o animê consegue fazer isso muito bem. Os mortos-vivos são raramente usados para alimentar o drama, mas toda questão apocalíptica intensifica de fato os sentimentos dos humanos na série como qualquer história de zumbis minimamente bem escrita.
O propósito de Akira de fazer uma lista sobre o que sempre quis fazer e, de fato, cumprir esses objetivos, por exemplo, é muito bem feito e até mesmo ressoa entre outros personagens, já que a lista de Akira não é a única a aparecer durante a história. Inclusive, mais para a parte final da série, vemos o quanto uma lista dessas pode ser maligna — só que, mesmo de forma muita caricata, a história ainda deixa claro que esse mal não necessariamente nasce dos sentimentos humanos, mas sim que muita coisa deriva de como nossa sociedade atual funciona. No caso de Zom 100, ainda há uma beliscada adicional no quanto o Japão já está afundado nesses problemas.
No entanto, mesmo que Akira tenha criado um senso de liberdade com sua lista de objetivos, ele ainda não está completamente livre das amarras impostas pelo mundo pós-liberalista, já que quando ele encontra seu antigo chefe no emprego, automaticamente começa a tomar atitudes um tanto irracionais e submissas, mostrando o quanto passar tantos anos lá afetou seu comportamento.
Até este momento no animê, Akira era para seus companheiros a própria visão do que é saber curtir a vida, então o choque em agir dessa forma é muito grande não só para eles, mas também para o espectador. Essa parte específica do animê é onde considero que Zom 100 consegue entregar sua mensagem de forma mais potente ao público, mostrando que não é fácil se livrar de padrões que existem, bem, praticamente desde que todos nós nos entendemos por gente e que se instauram a cada dia de forma mais predatória.
Para Akira, viver em um mundo com constante perigo de morte conseguia ser muito mais libertador que viver num local aparentemente seguro, mas onde teria que voltar a seguir as regras que o tanto afetaram. Inclusive, o animê faz questão de mostrar que Akira estava apenas há alguns poucos anos preso nesse mundo de opressão da vida adulta, indicando que não precisa de muito para ter a mente destruída nesse contexto. O tom cômico do animê talvez não deixe transparecer tanto, mas é uma mensagem muito forte.
Outro ponto de destaque é o quanto existe um esforço de Akira em não apenas ser livre por si só, mas também em ajudar pessoas próximas a conquistarem esse objetivo. Durante a história, é ele que em várias situações vira a força para que os personagens também consigam ver a vantagem em seguir seus sonhos e viverem como quiserem. E vemos que eles recompensam esse apoio quando Akira de fato precisa.
Também vemos o quanto a união das pessoas no momento de crise é importante para a sobrevivência no apocalipse zumbi. Porém, é interessante como a série faz questões de mostrar situações distintas: um grupo comandado por uma pessoa que age praticamente como um ditador e outro onde todas as pessoas trabalham juntas para sobreviverem pelo bem maior.
Em ambos os grupos, Akira decide, mesmo que momentaneamente, ficar em um lugar fixo, no primeiro porque foi oprimido a pensar assim e no segundo porque ele se sentiu verdadeiramente acolhido. E, bem, claro que o que acaba funcionando é apenas o segundo exemplo de sociedade exemplificado. A essa altura vocês já devem ter entendido o ponto da coisa.
Além de tudo o que se propõe a criticar, Zom 100 é extremamente charmoso em outros quesitos. Os quatro protagonistas são extremamente carismáticos e, como um grupo, funcionam de forma perfeita. Realmente passa uma sensação ótima acompanhar a aventura por um mundo lotado de zumbis, desde as menores até as maiores ações.
Episódios como o que o grupo se esforça ao máximo para comer o sushi de um mestre ou o que eles se unem a um carpinteiro para criar uma casa na árvore mostram de forma muito singela a importância da mensagem que a série tenta passar, mesmo que através das coisas mais simples da vida. É uma forma carinhosa de recompensar o espectador.
Os momentos mais cômicos sempre são coisas que abraçam com gosto o absurdo. Há um episódio inteiro em que Akira tenta realizar seu sonho de ser herói, e ele mostra bem que o animê não tem vergonha de abraçar o ridículo e traz um enorme tubarão zumbi correndo (sim, com pernas) num aquário, sem preocupação alguma de ser julgado. A série também não se contém e mostra que, sim, Akira pode ser um herói poderoso capaz bater de frente com um tubarão. A liberdade dele proporciona isso.
O animê também consegue retratar muito bem o “outro lado”, criando vários pequenos vilões humanos ao longo da história. A forma caricata como alguns são retratados, por mais que soe estranho em algumas cenas, é necessária para mostrar de forma efetiva a crítica do animê, para não deixar dúvidas ao espectador de que aquilo é o que é errado.
Esse contraste fica ainda mais forte considerando o uso do gênero zumbis, já que eles entram na crítica de forma interessante, como no momento em que os vemos alguns sendo usados como burros de carga pelo ex-chefe de Akira. E a série não esconde que essa representação visual quer dizer exatamente o que está nas entrelinhas. De que numa sociedade como aquela, não existe descanso nem mesmo após a morte.
Apesar da produção ambiciosa, 100 Coisas para Fazer Antes de Virar Zumbi (ou Zom 100) é uma daquelas obras que tem uma premissa simples, mas que funciona extremamente bem. A série consegue entregar uma comédia de forma leve sem destoar muito do contexto que a história apresenta, além de introduzir os dramas na medida certa, mesmo que alguns pareçam mais forçados que outros.
É horrível que o animê tenha virado quase um pedido de socorro quando levamos todos os problemas de produção em consideração, porém foi possível sentir que existiu muita paixão para entregar a mensagem da obra através dessa adaptação. Não só por coisas como a qualidade da animação, mas também por existir todo um cuidado em deixar bastante claro o propósito da série.
Só é triste que a equipe tenha precisado passar pelo que passou para entregar isso ao público e que, inevitavelmente, essa história e as pessoas que trabalharam nela virem apenas mais alguns entre os vários produtos de massa porque é assim que as coisas funcionam, por mais que seja horrível ser constantemente relembrado disso.
Zom 100 está disponível na Netflix e na Crunchyroll com opção de áudio original, dublagem em português e outros idiomas, e legendas em português e outros idiomas.
O texto presente é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.
Muito boa a resenha, vou ver esse!