Dead Dead Demon’s Dededede Destruction é um animê que pode ser lido com diferentes interpretações. Pode servir como uma parábola à maneira como o Japão, ou como outros países do mundo, aos seus modos, lidam com imigrantes. Pode funcionar como uma reflexão acerca da passividade com que o planeta lida com a iminente extinção devido às crescentes crises climáticas, preferindo colocar mais importância em passagens corriqueiras da vida que não terão mais quaisquer utilidades futuras do que enfrentar os reais problemas. Pode colar como uma metáfora a respeito do quanto o capitalismo é agressivo ao povo e sobre a concentração da maioria do dinheiro na mão de tão pouca gente ser algo venenoso.
Mas acho que o grande fio condutor temático que liga todas essas conjecturas é outro, e que permeia toda a narrativa do desenho: o quanto o amor pode ser egoísta. Explico.
Baseado no mangá de mesmo nome do autor Inio Asano (Boa Noite Punpun, Heroes), publicado no Brasil pela JBC, acompanhamos aqui o desenrolar do que virá a ser um futuro pós-apocalíptico. Isso mesmo: o desenrolar. E é um desenrolar lento e angustiante pelo ar de marasmo com que os personagens, e a sociedade ali num todo, lidam com sua iminente extinção.
Tudo começa em 31 de agosto, um dia normal, corrido e ensolarado em Tóquio. As pessoas vivem suas vidas com preocupações corriqueiras, até que uma imensa nave alienígena surge nos céus. Ocorre de pedaços dela caírem numa região, tornando o lugar inabitável. Uma situação assim poderia criar uma histeria coletiva, com a população em pânico e a evacuação da cidade, para que esforços locais e internacionais lidassem com tal grandiosidade, certo? Bom, não exatamente.
Corta para três anos depois, e acompanhamos a história, em grande parte, a partir de um núcleo de estudantes no finzinho do Ensino Médio, prestes a entrar para a faculdade e iniciar suas vidas adultas. Nesse grupo, está a dupla de protagonistas, Oran “Ontan” Nakagawa e Kadode Koyama. O que as duas irão aprontar nesse momento de transição em Tóquio? É o que descobriremos!
Quer dizer, mais ou menos. Porque a narrativa do animê contrapõe essa “normalidade” do fim da adolescência com o extraordinário de, bom, o mundo provavelmente acabar pela invasão alienígena. Então, enquanto acompanhamos fatos como os últimos dias de aula daquele grupo de amigas, saídas delas se divertindo, os primeiros passos após a formatura, os primeiros amores, os grupos em que elas passam a fazer parte na faculdade, uma viagem para aproveitar o calor na praia, e coisas do tipo, ao fundo, o cenário político e social pega fogo.
Observamos a representação de uma cúpula política japonesa mais preocupada em manter a aparência e a supremacia interna do que em garantir a segurança dos próprios cidadãos. É conversado que seria melhor que Tóquio fosse evacuada, mas isso não ocorre.
Também não é criado algum plano de diálogo com os invasores alienígenas, de modo que não sabem se vieram em paz ou com intenções ofensivas. Em vez disso, rola o investimento em programas onde robôs dotados de inteligência artificial são construídos para atacarem o que sair da nave nos céus. E por baixo dos panos, um estádio esportivo é transformado em uma nave que, caso a Terra não tenha salvação, irá salvar “cidadãos importantes” da humanidade. Nessa, o próprio primeiro ministro do Japão não está incluído. Aqui, ele é retratado como um fantoche perante o “governo” como uma organização.
É meio impossível não imaginar Dededede como uma grande metáfora para a maneira como imigrantes são tratados no Japão, e mais, para o modo como refugiados de guerra são recebidos em diferentes locais. Pois o roteiro nunca coloca uma característica específica nos ETs que torne eles relacionáveis com alguma situação específica de algum país, mas junta elementos que podem ser lidos em diferentes contextos. São um povo que já habitava a Terra antes mesmo dos humanos, mas que precisaram sair, e agora gostariam de retornar, aparentemente enganados por seus superiores de que ali eles teriam uma casa. Contudo, encontram uma recepção, na maioria, violenta e preconceituosa. E em bem menor escala, despertam a empatia de alguns grupos, que acreditam que a paz estaria no diálogo.
É interessante como o animê retrata como uma situação assim, de guerra, de invasão, de retomada, enfim, é vista por diferentes pontos em diferentes núcleos. Há a já mencionada camada mais alta, do alto escalão do governo, fria e desprendida do que de ruim pode acontecer com o povo. Vemos o ponto de vista dos aliens, que também têm vontades, famílias, alegrias, tristezas, medo, fome, frio, e que podem sofrer com a crueldade humana, simplesmente, por serem diferentes.
Vemos o olhar de simpatizantes desses extraterrestres através de um grupo que tenta levar uma mensagem de que é necessário estabelecer diálogo com eles em vez de exterminá-los. No oposto, vemos como uma milícia de extermínio alienígena, liderada por um dos colegas de escola das protagonistas, nasce a partir de teorias da conspiração na internet.
Mas nada é preto no branco. Entre os ETs, vemos que há um conflito de ideologias internas. Entre os simpatizantes pacifistas, há muito de se aproveitar dos status para conseguir vantagens morais e sexuais, além de uma inclinação extremamente violenta de alguns dos integrantes. E na milícia, embora possa existir uma interpretação torta de que aquela violência é necessária para manter a integridade da humanidade, com o passar dos episódios, descobrimos que há muito dos interesses pessoais daquele líder ali — que, no fim, prefere a destruição e a morte de muitos humanos para que ele possa reinar em meio a esse caos.
O roteiro não pega caminhos fáceis. São situações e personagens extremamente complexos, complicados mesmo. Como em muitos clássicos da ficção-científica, Dededede pega uma situação extraordinária para expor, dentro de uma parábola, a podridão da sociedade.
E é engraçado como, dentro da história, a sociedade japonesa ali no grosso, no pé de chão, é retratada quase como indiferente ao que ocorre. Uma nave espacial gigantesca passa a sobrevoar a cidade, diferentes incidentes, que destroem locais e matam pessoas, ocorrem, mas a grande maioria dos cidadãos simplesmente segue a vida estudando, trabalhando “como se houvesse amanhã”. A eventual morte está literalmente acima da cabeça, mas tornasse um fato corriqueiro em meio ao cotidiano. Há uma cena que ilustra isso bem, quando o pai de uma das protagonistas, quando as coisas realmente começam a esquentar e seu outro filho sugere que eles saiam da cidade, responde que achar que, no fim, tudo vai se resolver como sempre se resolve. Não tem como não traçar paralelos com a crise climática mundial atual, em que todos sabem que o futuro nela pode ser catastrófico, mas pouco se movem para mudá-lo.
Mas fica também a pulga atrás da orelha do que exatamente o povo poderia fazer. Sair de Tóquio, abandonar sua própria casa, para ir para outro lugar, sem ter certeza de que terá emprego, moradia, ou o que comer? Porque o governo, aqui, parece não se importar em prover de verdade para isso. Pelo contrário, são oferecidos auxílios financeiros para quem permanecer nas áreas de maior risco. E isso gera um dos episódios mais impactantes do animê, quando uma jornalista filma uma matéria com uma ilustradora que mora com sua mãe numa dessas zonas. Mas é Dededede, então não espere algo tocante, sim motivações que vão além da superficialidade e dos conceitos mais básicos de “certo” e “errado”.
O que nos leva às protagonistas. Um bom pedaço da narrativa nos vende Ontan e Kadode como mais duas garotas dentro do que é esperado entre estudantes em animês. Ontan é aquele estereótipo de menina mais engraçadinha, divertida, fora da casinha, que não se vê muito obrigada a seguir convenções, mas que está ali pelos amigos dela, que defenderá todos e nunca fará mal a ninguém. Kadode é aquele oposto complementar, mais pé no chão, mais “madura”, e mais “edgy” em suas decisões (por exemplo, tentar namorar um professor). Elas vivem essa realidade meio passiva em relação ao fim do mundo junto com os amigos, em grande parte soam como vítimas das situações.
Mas, plot twist: não é bem assim. E, ó, spoilers gravíssimos daqui em diante. Em dada passagem, quando Keita Ooba, um dos alienígenas, mas que está dentro do corpo de um humano, tem um contato mental com Ontan através de uma máquina, descobrimos que, na verdade, a invasão (e consequentemente a provável extinção da humanidade) só está ocorrendo por… culpa da Ontan.
Em uma outra linha do tempo, Ontan e Kadode, quando mais novas, num acampamento de verão, salvam um alienígena de ser morto na mão de outras crianças. Elas fazem amizade com esse et, que acaba funcionando como o Isobeyan delas, um personagem fictício do qual Kadode é fã dos mangás (mais ou menos o Doraemon do animê). O extraterrestre dá para as meninas alguns itens tecnológicos de seu planeta, que são bem mais avançados do que qualquer coisa já desenvolvida na Terra. Há uma capa de invisibilidade, uma caneta com a habilidade de mover objetos, um chapéu com uma hélice que pode ser usado para voar.
Nessa, Kadode, que sofre bullying na escola, passa a atuar como uma justiceira pela cidade (ela acha que está agindo como uma heroína). Mas o poder sobe à cabeça da menininha, que passa a torturar e assassinar pessoas que ela julga que merecem isso. No fim, a garota morre de um jeito bem triste e traumático para Ontan. Kadode se tornou um monstro, e ao observar isso, o alien, que se revela como um emissário de sua raça, pesquisando ali sobre o local para saber se a nave mãe, anos depois, deveria invadir, decide que fará um relatório negativo. A humanidade, de acordo com o que ele viu na Kadode, é cruel, bizarra, mesquinha, agressiva, e muito, muito perigosa.
Só que, triste com a morte da amiguinha, Ontan pede que o etzinho faça alguma coisa para que ela volte. Isso é impossível com a tecnologia atual da sociedade dele. Aquela Kadode jamais irá retornar. No entanto, há uma nova chance para a Ontan com uma outra Kadode. Ele pode enviar a mente dela para uma nova linha do tempo, onde ela substituirá a respectiva Ontan daquela realidade, e poderá conviver com a Kadode dali e impedir que ela seja corrompida. A consequência disso, porém, é que há a possibilidade de, ao presenciar a monstruosidade na Kadode, o alien daquela realidade faça um relatório positivo em relação à invasão.
Ontan, então, se entrega ao egoísmo do amor. Ela sabe que poderá extinguir o planeta daquela linha do tempo, que nada tem a ver com ela, mas opta por isso apenas para poder salvar sua amiga que ela tanto ama por mais alguns anos. Ela transporta sua mente para essa linha do tempo, impede Kadode de ir ao acampamento de verão, elas não encontram o extraterreste, Kadode não se transforma numa assassina em série, e anos depois a nave mãe chega aos céus de Tóquio.
Por isso, antes de todas as outras interpretações possíveis e bem pungentes dessa história, Dead Dead Demon’s Dededede Destruction é um grande animê sobre o quanto o amor pode ser egoísta. Sobre o quanto essa explosão de sentimentos que temos quando nos apaixonamos pode nos levar a fazer coisas inimagináveis, a sequer pensarmos sobre as consequências em nossas ou nas vidas de outras pessoas que nada tem a ver com isso. Sobre o quanto nos tornamos passionais em prol daquela pessoa que queremos tanto. E talvez nada no mundo resuma melhor a adolescência do que isso.
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Dead Dead Demons Dededede Destruction é exibido legendado pela Crunchyroll. O serviço fornece um acesso de imprensa ao JBox.
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vou assistir!!
''No fundo, essa é uma história sobre o quanto o amor pode ser egoísta'' resume bem esse anime fiquei curioso sobre ele e assisti, vlw a pena pq ele tem um estilo único, gostei nota 8/10, recomendo.
Dungeon Meshi foi maravilhoso, mas esse definitivamente é o anime do ano pra mim. É um recorte belíssimo da impotência do indivíduo diante da sujeira daqueles com mais poder e influência, ao mesmo tempo em que a reviravolta dá ênfase justamente nas consequências decorrentes da ação de uma única pessoa. Muito bom esse texto, agradeço por celebrarem essa série, o marketing dela foi pavoroso e sinto que ninguém está assistindo.
Acabei de comprar o último volume do mangá, em breve lerei