O texto a seguir conta com spoilers da primeira à parte 1 da quarta temporada do animê de Attack on Titan.


No diálogo travado entre Sócrates e Glauco em A República, é narrada a existência de uma caverna onde prisioneiros morassem nela desde que nasceram. Lá, eles estão sempre com as mãos amarradas numa parede e só conseguem observar sombras que são projetadas à frente deles.

Essas sombras, na verdade, vêm de uma fogueira acima da parede onde eles estão presos. Pessoas passam na frente das chamas, fazem gestos e aproximam objetos. E as sombras ocasionadas por isso, uma versão distorcida da realidade, junto dos ecos de barulhos, são todo o conhecimento de fora que aqueles homens têm.

Em dado momento, um dos prisioneiros é solto. Ele consegue escalar a parede, aí percebe a fogueira e entende que as sombras não eram a realidade propriamente dita. Andando mais, ele encontra a saída da caverna e toma um susto ao se deparar com o mundo exterior. A luz do sol ofusca sua visão, deixando ele confuso, desamparado, deslocado naquela nova realidade. E quando ele se acostuma com a claridade, enfim entende que não só há muito mais no mundo que o que era refletido nas paredes pela fogueira, mas até mesmo que o espaço limitado daquela caverna. Ele se depara com um infinito que ele nunca sequer havia cogitado existir.

No fim, ele tem duas possibilidades: voltar para a caverna e libertar seus companheiros ou viver sua liberdade. Mas pode ser que, ao voltar para a caverna, seus companheiros o julguem como louco. Afinal, ainda estariam presos à finitude controlada daquele ambiente anterior.

A Alegoria da Caverna, de Platão, é um ponto de partida teórico que pode ser utilizado num sem número de obras que buscam ilustrar o quão importante é o conhecimento, como ele pode ser usado como poder por aqueles que o detêm e o tanto de desconforto que conquistá-lo pode trazer.

As que utilizam algum tipo de paralelo à ela como engate narrativo vão do clássico do cinema mudo Metrópolis (1927), passando por pérolas contemporâneas como Ghost in the Shell (1995) e Matrix (1999), até produções ainda mais recentes, como Psycho-Pass (2012), The Promised Neverland (2019) e Attack on Titan – neste último, usando ainda outros vários elementos quase que dissonantes no papel, mas que funcionam muito bem em tela, para construir uma história aterrorizante sobre o poder da ignorância e como ele pode ser usado para controlar a sociedade.

Imagem: A cidade murada.

A caverna… | Imagem: Reprodução.

Vocês já sabem, mas é bom relembrar: Attack on Titan (ou Shingeki no Kyojin para os mais puristas) é uma série animada japonesa adaptada do mangá de mesmo nome, publicado desde 2009 na Bessatsu Shounen Magazine, com 3 temporadas produzidas pelo estúdio WIT, que foram ao ar entre 2013 e 2019, e uma temporada final pelo estúdio MAPPA, ainda incompleta, divididas em duas partes, com a primeira tendo sido encerrada há alguns dias e sua segunda metade indo ao ar no ano que vem.

Durante a fase WIT, as temporadas foram dirigidas por Tetsurou Araki (o mesmo de Death Note e Highschool of the Dead) e Masashi Koizuka (um pegou a primeira, o outro a segunda, depois se juntaram na terceira) e com roteiro de Yasuko Kobayashi. Já na fase MAPPA, a equipe criativa mudou, com direção dividida entre Jun Shishido e Yuuichirou Hayashi e roteiro por Hiroshi Seko. Mudanças assim de staff poderiam estranhar o clima da obra, mas não é esse o caso.

Na trama, inicialmente, acompanhamos a escalada militar de três jovens, Eren, Mikasa e Armin, numa cidade murada que é atacada por titãs, criaturas que, na mitologia da série em tal ponto, são gigantes pelados que devoram humanos sem qualquer motivo aparente. Eren, contudo, consegue se transformar em um titã por conta própria e manter a sanidade nesse processo.

Então, ele passa a ser utilizado como arma dentro do exército, entrando com os amigos numa unidade de exploração, cuja missão é ir além das muralhas e buscar respostas para o avanço da humanidade ante tal perigo. Mais para frente, algumas peças do tabuleiro se movimentam e, tanto nós, espectadores, quanto aqueles personagens, descobrimos que eles fazem parte de algo bem maior e precisam lidar com isso enquanto enfrentam ainda outros perigos.

Isso posto, Attack on Titan é muito bom! E por muitos motivos…

Imagem: Eren atacando um titã.

Imagem: Reprodução.

Esse é um daqueles casos onde uma produção acerta em uma porção de pontos que se propõe a explorar. O animê consegue surpreender em diferentes camadas a cada nova temporada. É como se entendessem quando cada item mais forte em sua estrutura começa a “saturar”, então inserissem mais outra nova surpresa narrativa com força o suficiente para, junto dos outros prós do desenho, alimentar a satisfação do espectador em tela.

No começo, é impressionante se inserir naquele mundo esquisitão, sombrio e desesperançoso. São muitas as referências. Elas até podem soar esquisitas na teoria, mas calham de funcionar bem demais na execução. Há elementos fumacentos de steampunk; de filmes de zumbis, naquilo de ameaças descerebradas e imparáveis que precisam ser detidas com um golpe num lugar específico (os cérebros aqui, no caso, são as nucas); de animes mecha, com o protagonista enfrentando monstros gigantes enquanto controla a sua própria máquina (mas não mecânica); de fantasias medievais; e a lista segue.

Enche os olhos acompanhar aqueles monstros gigantes perturbadores devorando humanos. E o jeito como os humanos enfrentam eles também é impressionante. A ideia de um equipamento movido a vapor, que carrega os combatentes em “3D” pelas paredes rende muito em cena. E quando todas essas coisas caminham para perder seu brilho pela repetição, na segunda temporada, o roteiro aposta em viradas de mesa expandem aquele universo, abrindo possibilidades enormes para tal mundo e nos criando expectativas pros caminhos que a história tomará ao lidar com isso. Os personagens começam a sair da caverna. E nós vamos com eles.

Acho meu meu momento predileto de Attack on Titan é aquele segmento no episódio 31 onde o Reiner revela ao Eren ser o titã blindado. É tão casual e foge tanto das convenções que cenas de ápice desse tipo costumam ter que, de fato, nos pega de surpresa como um plot twist. Daí em diante, a temporada é preenchida por sequências e mais sequências de ação desenfreada e pistas do que está por vir.

Na terceira, tudo ganha ares de filmes com kaijus, onde a presença criaturas bestiais se soma a narrativas políticas internas. Então, como em longas desse tipo, somos colocados diante de situações onde é possível questionar se não é o homem o verdadeiro monstro e talvez ele deva ser o castigado nessa situação.

Tudo para que, na quarta temporada, nosso chão seja tirado ao abordarem o outro lado da história e evidenciarem o quão cruel tudo e todos os envolvidos nisso podem ser. Esse run final, em especial, é de cortar o coração em diversos momentos. Todo o plot com as crianças sendo treinadas para herdarem os titãs fundadores e morrerem anos depois, só pela ideologia que é colocada na cabeça do povo delas desde sempre, é muito angustiante.

Imagem: O personagem 'Gabi'.

Gabi, o resultado de anos duma lavagem cerebral idelógica… | Imagem: Reprodução.

São interessantíssimos os paralelos históricos que podem ser traçados aqui. O nazismo, a repressão sofrida por judeus, os campos de concentração, a desumanização dos eldianos sendo chamados de demônios como judeus eram chamados de ratos. O jeito como fazem os eldianos que moram em Marley se sentirem culpados por uma herança de algo ocorrido quando eles nem eram nascidos, utilizando-os como armas através dessa lavagem cerebral. É também uma alegoria ao fascismo. É também uma alegoria à xenofobia. É ainda outro animê político.

Animê político esse que, como tantas obras anteriores, conseguiu trazer as discussões apresentadas no mito platônico da caverna como um ponto de partida para, narrativamente, tratar do tanto de pautas que achou pertinente ao universo interno que a série permitiu construir. É a ignorância inicial sendo substituída pela verdade inconveniente, desconfortável, mas necessária. Mas substituindo a caverna por uma cidade murada que se desenvolveu tecnologicamente por outro caminho, as imagens formadas pelas sombras da fogueira por titãs propositalmente transformados e o mundo de fora por todo um conjunto de países inimigos (e uma geração de reis internos) que moldaram a história no que ela é agora.

O lance é que, o melhor de tudo isso, é que tais inspirações filosóficas e pautas retratadas servem mesmo é como pano de fundo para a história. O foco principal está em traçar a narrativa dos personagens, seus crescimentos, a partida deles do ponto “A” ao “B” e tudo o que os transformou nesse meio tempo. E, por consequência, como essa mudança se refletiu ao redor deles.

Seja construindo uma facção paramilitar para lidar com a guerra à sua maneira, caso do Eren; seja realizando mudanças internas no exército através de seus ideais mais mediadores, caso do Armin; e no caso da Mikasa, começando como uma personagem suporte e se tornando… se tornando… ok, não há desenvolvimento para a Mikasa, mas ela é cool, então a gente perdoa.

Quer dizer, no fundo, no fundo, aquém de todo esse subtexto político, Attack on Titan é um shounenzão bem cool de assistir. Com lutas muito legais, cenas lotadas de personagens que são coreografadas dum jeito fluido de assistir, gigantes dando e levando porrada e todos os demais artifícios de séries de ação sendo usados para nos entreter a cada episódio.

Imagem: Titã atacando a cidade.

O mundo fora da caverna é bem maior do que o esperado… | Imagem: Reprodução.

É perfeito? Não, claro que não! Como eu disse, a Mikasa não possui tanto desenvolvimento como personagem, o que é uma pena, pois desde o início ela nos é pintada como alguém que poderia render arcos narrativos mais aprofundados (os motivos dela ser tão habilidosa, sua origem), mas tudo o que é entregado é uma explicação pífia do porquê ela proteger tanto o Eren.

A animação do estúdio WIT na primeira temporada ainda não era tão afiada. Ao assistir do início e comparar com o resto, é um tiquinho esquisito. Particularmente, acho que demorou demais para que o Eren evoluísse. Tanto que é até meio difícil, de início, comprar que ele se tornou o que se tornou após a passagem de tempo entre a terceira e a quarta temporada. Imagino que essas lacunas serão preenchidas da metade final dessa season, mas teria sido mais satisfatório ver sinais dessa mudança em arcos anteriores.

Mas não é nada que prejudique de verdade a experiência. Honestamente, Attack on Titan é muito bom. Uma obra acima da média dentro do nicho de shounens. Daquelas para ver e rever várias vezes. Que venha logo a metade final e que ela seja tão boa quanto o que foi construído até então.


Attack on Titan (Shingeky no Kyojin) está disponível completo, com áudio original e legendas na Crunchyroll e com opção de dublagem em português (no momento em que esse texto vai ao ar, até o episódio 72) na Funimation. Ambas plataformas fornecem ao JBox um acesso a seus respectivos serviços.


O texto presente nesta resenha é de responsabilidade de seu autor e não reflete necessariamente a opinião do site JBox.


ATENÇÃO: Este texto foi feito com base única e exclusivamente no que foi mostrado da história até então no animê. Desse modo, pedimos encarecidamente que informações dadas na reta final do mangá não sejam utilizadas nos comentários. Assim, os leitores que ainda não estão cientes delas não terão suas experiências adiantadas por spoilers. :)