Texto: Leandrogon (Larc) e Rafael Jiback
Edição: Rafael Jiback
Revisão: Le Rolim
Última atualização em 11 de fevereiro de 2022.
Na metade dos anos 1990, a euforia provocada pelo sucesso comercial da série Os Cavaleiros do Zodíaco no Brasil levou diversas empresas a buscarem títulos da mesma origem — o Japão — para repetir a mesma fórmula. Assim, diversos novos animês foram licenciados em 1995 para lançamento no ano seguinte, com a difícil missão de “herdar” os fãs de Seiya e os outros. Em 1996, um desses produtos se destacava dos demais, entre outras questões, por conta de algumas particularidades no seu visual. Tal série recebeu o nome de Guerreiras Mágicas de Rayearth e, na mesma época – por intermédio das “revistinhas especializadas” – o público brasileiro começou a ouvir falar do Clamp pela 1ª vez.
O grupo Clamp é formado por quatro desenhistas (que dispensam assistentes por acharem que isso mais atrapalharia do que ajudaria — como revelado no livro CLAMP North Side) cujos trabalhos raramente não se tornam sucessos. Possuindo um traço singular, as meninas foram se destacando cada vez mais a cada novo trabalho lançado. E um dos mais famosos foi Cardcaptor Sakura, 13º título na carreira das moças. As aventuras da pequena heroína começaram a ser publicadas nas páginas da revista feminina mensal Nakayoshi em novembro de 1996 e rapidamente começaram a ganhar fãs e chamar atenção de diversas empresas interessadas em explorar os personagens comercialmente.
Como o Japão estava sob a ascensão da febre Pokémon na época, a história simpática de Sakura com seus elementozinhos “pokémonescos” (criança que tem que capturar ou ter alguma coisa colecionável, de preferência fofinha e facilmente “pelucível”) não demorou para ser animada. Entretanto, a competência com a qual produziram o animê, faz com que a gente esqueça a ideia de que a caçadora de cartas possa ser encarada como uma variante dos caçadores de monstrinhos.
Para Sakura despejar a tonelada de produtos no mercado e se mostrar como uma das marcas mais comerciais do Clamp, algumas decisões importantes precisaram ser tomadas e que tornam a sucessora do Mago Clow um bom respiro de garota mágica no cenário pós-Sailor Moon.
Uma nova experiência para o Clamp
Quem conhece Sakura por meio da sua versão animada pode acabar sentindo falta de muita coisa ao se aventurar pela fonte original. Vários elementos apresentados na TV não estão no mangá, que em uma leitura sequencial pode parecer mais direto. Mas precisamos lembrar que a história foi publicada na Nakayoshi, uma revista feminina de periodicidade mensal. Com cada capítulo novo saindo só daqui a um mês, a “enrolação” permitida na TV semanal não parece muito atrativa nos quadrinhos, onde as coisas precisam andar sem despertar o desinteresse do leitor.
Em 1996, o Clamp estava encerrando a sequência de Rayearth quando as meninas foram convidadas por seu editor a engatar uma nova série. Em entrevista publicada no livro Cardcaptor Sakura Memorial Book (de 2001, sem tradução para cá), a chefona do grupo, Nanase Ohkawa, disse que ela e suas companheiras queriam criar algo que nunca haviam feito antes. Apesar de contar com doze títulos comerciais naquele momento, o Clamp nunca havia trabalhado no seguimento lucrativo de “garota mágica” (e aqui você pode até dizer “pera, mas e Rayearth era o quê, então?” Bom, talvez ela quisesse dizer uma garotinha solo mesmo, rodeada das fofuras que o mundo de Zefir não apresenta).
Quando começou a desenvolver o conceito da protagonista, Ohkawa estava convicta que dessa vez a heroína teria a faixa etária do público-alvo da Nakayoshi, entre 10 e 12 anos, diferentemente de Rayearth, onde as guerreiras já eram adolescentes. “Fofura” também era um fator essencial para o caráter mais leve e suave que era pretendido, o que foi um desafio particular para outra artista do Clamp, Tsubaki Nekoi. “Eu não tinha experiência com o ‘estilo fofo'” — ela conta na mesma entrevista, enquanto a colega Satsuki Igarashi lembra que nunca o grupo havia desenhado tantas flores como em Cardcaptor Sakura.
Na produção de suas obras, as meninas costumam apresentar personagens com personalidades comuns, que fãs mais sensíveis conseguem identificar como “típicos” do universo Clamp. Touya, por exemplo, é implicante, ao mesmo tempo que amável, similar ao errante Ferio, de Rayearth. Somando personagens “calorosos”, como Yukito, ao seu cenário de colecionáveis e magia, Cardcaptor Sakura apresenta um enredo de relações humanas que supera de longe outros animês do mesmo segmento. Toda a estrutura foi planejada do início ao fim por Nanase Ohkawa, um ponto importante para sua liderança na versão animada, em que foi a principal roteirista.
Com grande potencial comercial a ser explorado por gigantes dos brinquedos como a Bandai, o animê não mediu esforços financeiros para a sua realização, sendo na época um recorde de investimento da rede de TV NHK. O estúdio Madhouse, que vinha de uma safra de títulos emblemáticos para o cinema, como Perfect Blue e Memories, além de já ter trabalhado pro Clamp com o longa do mangá X, foi escalado para a produção. Morio Asaka, talento recente da casa, foi escalado para sua primeira série como diretor (o trabalho aqui lhe abriria portas para títulos como NANA, Chobits e Chihayafuru em seguida, então dá pra perceber que o moço aproveitou bem a oportunidade).
A união da NHK com a empresa não foi ao acaso, já que o Madhouse estava finalizando a sua primeira série solo para o público infantil, Azuki-chan (história também vinda da Nakayoshi), que havia ido ao ar pela emissora por três anos e agora seria substituída pela caçadora de cartas.
Chave que guarda o poder das trevas, mostre seus verdadeiros poderes sobre nós e ofereça-os à valente Sakura que aceitou esta missão!
Liberte-se!
Para contar um pouco da história de Cardcaptor Sakura, ou Sakura Card Captors, como ficou conhecido primeiramente no Brasil, vamos pegar como foco a versão animada, a mais popular entre nós. Mas mais à frente pontuamos algumas diferenças importantes entre a versão em quadrinhos (que também foi publicada por aqui, mais de uma vez). Então simbora!
Tudo começa quando a pequena Sakura Kinomoto estava sozinha em casa e ouve estranhos barulhos vindos da biblioteca do seu pai. Achando que se tratava de um ladrão, a garota vai bisbilhotar e nota que os ruídos vinham de um livro. Ao abri-lo, ela encontra um monte de cartas e, ao ler numa delas a palavra vento, uma forte ventania espalha todas as outras para fora da casa.
Não bastasse o susto que tomara, Sakura ainda é surpreendida com o surgimento de um “bichinho de pelúcia falante”, que se apresenta como Kerberos, o guardião do livro e de suas cartas encantadas: as Cartas Clow.
Kero (apelido que Sakura dá pro bichinho) explica que as Cartas Clow foram criadas por um grande mago no passado e que possuem vontade própria. Caso as cartas ficassem espalhadas por aí, poderiam causar muita confusão e desordem no mundo. Por ela as ter libertado, Kero incumbe à Sakura a missão de recapturar todas essas cartas mágicas. Uma pequena chave que estava no livro é dada à menina e, invocando poderes mágicos (através de um bonito efeito que conferiu ao animê um belíssimo visual pra época), ela transforma essa chave em um báculo capaz de fazer a Carta Clow voltar… “à forma humilde que merece”.
Ah… Cada carta que Sakura pega passa a poder ser utilizada para auxiliá-la na captura das demais. Além de Kero, a caçadora conta com a ajuda de sua peculiar amiguinha Tomoyo (que declaradamente a ama, mas a menina não percebe esse carinho “a mais”), filha da prima da mãe falecida de Sakura (o que a protagonista demora um pouco a saber) e que vive pra cima e pra baixo com uma filmadora na mão – além de confeccionar com a rapidez de outro mundo uma série de roupinhas de batalha pra menina (um bom artifício pro mercado vender todo tipo de bonecas, né?).
Sakura mora com seu pai Fujitaka e o irmão mais velho Touya, e não quer que ambos saibam de sua rotina como Cardcaptor. Mas Touya possui estranhos poderes sensitivos e mesmo que a pequena não desconfie, o irmão parece saber tudo que se passa com ela. O melhor amigo de Touya, Yukito, é a paixão da vida da menininha. Basta ele aparecer pra ela ficar toda envergonhadinha e falar seu clássico “ai ai ai Yukituuuuu” (um feliz bordão criado na dublagem brazuca). Mal sabe Sakura que Yukito é bem mais que seu amor secreto…
Da China, chega o esquentadinho Shaoran (ou Syaoran, que na dublagem foi lido como “Shoran”) Li. Ele é descendente da família do Mago Clow e a princípio se apresenta como um rival de Sakura na captura das cartas. O garoto lida com poderes mágicos e fica todo sem graça quando vê Yukito, da mesma forma que Sakura, o que pode fazer o espectador pensar que o menino também é rival dela no amor (mas teremos explicação para isso mais à frente na série, pois Nanase Ohkawa não brinca em serviço). Mais tarde, chega também a mala sem alça da “namorada” e prima do Shaoran: Meiling. Criada exclusivamente para a série animada, ela não vai nem um pouco com a cara da Sakura, pois acha que ela quer roubá-lo dela. Bem… No começo a menina não tem muita razão pra se preocupar, mas a história ainda guarda reviravoltas bem interessantes, com o amadurecimento emocional das personagens.
Na parte final da 1ª fase, que se encerrou com 35 episódios, ainda temos a aparição da professora Kaho (ou “Kajo”, como falado na dublagem) Mizuki. A mulher chega como mestre substituta na classe de Sakura e fornece mais pitadas de mistério para a trama que, até então, estava mais centrada no cotidiano das crianças e na “carta do dia” a ser capturada. Esses segredos envolvendo os sonhos premonitórios da pequena caçadora alimentam a curta 2ª fase, que só chegaria à TV japonesa no ano seguinte.
Mais 11 episódios
Diferentemente do mangá, que não precisava ter essa preocupação, a produção da série de TV foi pensada para acompanhar o ano letivo das crianças no Japão. Assim, o cotidiano escolar de Sakura seguiria fielmente o dos pequenos espectadores — e potenciais consumidores de produtos.
O animê deu uma pausa nas férias de inverno (o período do nosso verão, no começo do ano) de 1999, retornando com uma nova fornada de episódios somente no mês de abril, que é quando começa o ano letivo por lá. Como o formato de exibição no Brasil é bem diferente (diário), muitos por aqui não notaram que essa era uma “2ª temporada”, já que é nela que vem o verdadeiro desfecho do arco de Sakura como uma caçadora de cartas iniciado no 1º capítulo.
Com apenas 11 episódios, nessa leva acompanhamos as últimas capturas de cartas, a revelação da verdadeira forma de Kero, parte do segredo de Mizuki e o surgimento de Yue e seu “julgamento final”. E nesse primeiro desfecho também dá pra notar a influência das diferenças em relação ao material original.
Para se tornar mais atrativo comercialmente, o animê trouxe muito mais cartas Clow do que no mangá, saltando de 19 cartinhas para mais de 50 (!), sendo que algumas delas são exclusivas de filmes ou nem mesmo têm a sua captura mostrada na série de TV. Pra coordenar e provavelmente evitar possíveis incoerências, a própria Nanase Ohkawa assinou diversos dos roteiros do animê, assumindo as rédeas totalmente do meio dessa fase até o final da série. Mas isso não evitou algumas repetições de situação. A multiplicação em nome do merchandising trouxe coisas como uma carta de “Neve” já existindo uma de “Gelo”, ou uma carta de “Nuvem” já existindo uma de “Chuva”, dentre outras.
Outro fator usado pra costurar essa quantidade de cartas foi tornar Shaoran também um caçador, aumentando essa rivalidade inicial com Sakura. Na obra original, o moleque não pega carta nenhuma e isso acaba prejudicando um pouco o animê na hora do tal do julgamento, onde Li também precisa sofrer uma provação (não necessária na versão em quadrinhos).
Meiling, por mais que tenha sido uma adição bem-vinda para explorar a família Li, inevitavelmente começou a sobrar e encerra aqui a sua participação, tendo apenas alguns momentos pontuais na temporada seguinte. Com ela no elenco, provavelmente seria mais complicado de explorar o romance que é parte importante no arco final.
Transformando as cartas e o “quase fim” da série
Em julho de 1999, o animê de Cardcaptor Sakura dá mais uma pausa e se prepara para se aventurar na tela grande. As férias de verão são aproveitadas pra levar a pirralhada do Japão a assistir ao 1º longa-metragem (sabe-se lá o porquê, inédito no Brasil), que na verdade se encaixa entre o fim da 1ª e o começo da 2ª fase. O filme estreia em 21 de agosto daquele ano, enquanto a série retorna para a última saga em setembro.
Na história da 3ª temporada, depois do “julgamento”, Sakura passa a ter Yue (a verdadeira forma de Yukito) como aliado, mas quase ao mesmo tempo começam a acontecer estranhos fenômenos na cidade. E o pior é que tudo parece ser obra de ninguém mais, ninguém menos que o próprio e falecido Mago Clow. Bom… A verdade é mais ou menos essa porque o responsável pelos distúrbios é um garoto novo da escola de Sakura, chamado Eriol, que vamos confirmar lá na frente que é a reencarnação do mago (embora desde o começo, nós que estamos vendo já pudéssemos desconfiar).
Eriol possui dois guardiões, tal como Sakura: um “Kero preto” (Spinel Sun) e uma “Yukito borboleta” (Ruby Moon). Juntos, o trio bola situações bizarras que forçam Sakura a desenvolver mais a sua magia, já que ela precisa transformar todas as cartas em “Cartas Sakura”, ganhando um design rosa mais fofinho. Isso porque, com um novo brinquedo, digo, novo báculo sob influência do poder da própria estrela da menina, os objetos de Clow antigamente regidos pelo Sol e pela Lua deixam de obedecê-la. Com todos os exemplares extras que o animê desenvolveu, temos mais fôlego pra acompanhar a saga da transformação das cartas, que a princípio deixam a garota super esgotada a cada aventura. Na esticada televisiva, também há espaço para mais participação do elenco de apoio (as colegas de Sakura), que vez ou outra são envolvidas nas desventuras do cotidiano.
Aqui também vemos o romance principal desabrochar de vez, enquanto outros, muito especulados por quem assiste (Yukito e Touya, principalmente), permanecem no campo das ideias. Depois que Yukito vira Yue, Shaoran percebe que seu amor mesmo é por Sakura e vamos enrolando a saga inteira até que ele tenha coragem de se declarar.
O final mais uma vez escolhe se desprender bastante do que vemos no mangá (que só chegaria na Nakayoshi três meses depois do fim na TV). Felizmente, a animação ignora totalmente a formalização de dois relacionamentos “controversos” dos quadrinhos: Rika com Terada e Eriol com Mizuki. Outra coisa deixada de lado é o fato de que o pai da Sakura também seria uma reencarnação de Clow (!). Pra completar, a batalha final conta com uma ajudinha de Shaoran, que no mangá está adormecido durante todo o processo.
No último episódio da série de TV, nossa pequena heroína também descobre o amor… Mas a resposta final para seus sentimentos só viria nas férias de verão de 2000, com a estreia nos cinemas do 2º filme, A Carta Selada — este sim exibido por aqui. Bom, pelo menos era a resposta naquela época.
No Brasil: Sakura Card Captors
Quem acompanhou animês na virada dos anos 1990 para os 2000 se acostumou a ver uma regra chata para uma parcela de séries. Quando algum título fazia um pit-stop nos Estados Unidos ou Canadá, era difícil que ele saísse ileso. Foi o caso de Samurai Warriors (Samurai Troopers no Japão e Ronin Warriors nos EUA), Pokémon (que de tão descaracterizado muitos esqueciam que era japonês), Super Pig, Shinzo… e tantos outros.
Sabe-se lá por qual razão, a Nelvana (que trabalhou também com Beyblade) resolveu alterar a história de Cardcaptor Sakura de forma que Shaoran fosse o protagonista! Isso mesmo que você leu! Na primeira passagem pelos EUA, o animê se chamou apenas Cardcaptors e todo o roteiro foi escrito de forma que Shaoran fosse o herói e Sakura uma coadjuvante. Fora isso, descartaram a trilha sonora, podaram sugestões de relações amorosas independentemente de orientação e alteraram nomes (Kinomoto virou Avalon, por exemplo).
Se nós fomos salvos dessa presepada, devemos tudo à existência da Cloverway, distribuidora de mídia que ficou responsável por repassar a série para a América Latina, escolhendo como base a versão original japonesa. O pit-stop que tivemos foi no México, cuja dublagem em espanhol foi a herança repassada para o estúdio BKS, em São Paulo. Como herança tivemos também o confuso título de Sakura Card Captors, não apenas invertendo o título japonês como colando um plural sem sentido (sim, temos mais de um “cardcaptor” no animê, mas a Sakura do título é uma só, né?). A confusão era tanta que, dentro da dublagem, nas prévias dos episódios seguintes, havia a chamada “no próximo episódio de Sakura Card Captor”, no singular.
Sakura Card Captors desembarcou no Brasil sem grandes alardes, estreando em 1º de novembro de 2000, junto com Sailor Moon R, nas tardes do Cartoon Network (numa época que TV paga ainda era um pequeno luxo). Mas logo o traço Clamp e a historinha cativante foram conquistando o público brasileiro. Inicialmente, o Cartoon exibiu de forma seguida as duas primeiras temporadas até as reprises, não demorando muito pra estrear o arco final em 5 de março de 2001. Em 2 de abril passou a ter uma reprise do episódio da tarde a 1 da madrugada e mais um horário alternativo aos sábados.
A dublagem e adaptação da BKS conseguiu um efeito inversamente proporcional à “colega” Sailor Moon R (cuja dublagem no mesmo estúdio, com troca total de elenco da primeira temporada, causou inúmeras críticas negativas na época). Sakura, inclusive, ganhou a mesma voz da Sailor Moon daquela fase, a então jovem Daniella Piquet, responsável por emplacar o bordão “ai, ai, ai”, inexistente mesmo na versão mexicana. Alguns errinhos ocorreram, além de algumas inconstâncias de nomes, mas no geral era um trabalho agradável de se ouvir. Kero ganhou a voz do versátil Ivo “Tatu” Roberto, que em nada lembra a vozinha infantil da versão japonesa, mas que imprimiu uma personalidade única ao mascote.
Na época, as musiquinhas de abertura e encerramento adaptadas foram apenas as primeiras (porque o México também fez assim). Apesar do Cartoon manter a exibição dos vídeos dos segundos e terceiros temas, as músicas que ouvíamos eram sempre as primeiras. A voz das canções foi a de Soraya Orenga, famosa no meio sertanejo por seus backing vocals. Dentro dos limites da BKS, ela se esforçou, e o resultado mesmo que aquém do original marcou aqueles que acompanharam pela TV paga.
Em 11 de junho, depois de muita promessa, a Rede Globo começou a exibir o animê dentro do bloco da TV Globinho no programa Bambuluá. Apesar de tocar a abertura no primeiro dia de exibição, logo no segundo ela foi trocada por uma vinhetinha só anunciando o nome da série (era raro a Globo exibir aberturas de desenhos num geral…). Mesmo com isso, as canções que tocavam durante alguns episódios, e que estavam em japonês na exibição do Cartoon, ganharam versões dubladas exclusivas na TV aberta, boa parte delas interpretada por Nísia Moraes — curiosamente, a última delas era o tema de abertura da 3ª temporada, que acabou ganhando a versão em português naquele momento.
De início, a Globo chegou também a encomendar a redublagem (!) de alguns trechos, trocando toda menção a “cardcaptor” por “caçadora de cartas”, algo que logo foi deixado de lado. Os 70 episódios do animê foram exibidos em sequência e, milagrosamente, completos (ao menos no conteúdo principal dele), até mesmo com previews. Por ser um animê “da paz”, foi reprisado algumas vezes, porém nessas reprises, conseguiram picotar tanto os episódios que alguns chegaram a passar com 10 minutos de duração…
Bem, com a série em exibição pela maior emissora do país era hora de esperar pelos produtos, certo? Mais ou menos… O animê era trabalhado pela Imagine Action DáLicença, que vinha já de êxitos comerciais com Digimon e Dragon Ball Z, mas que não conseguiu explorar bem Sakura no mercado. A partir de novembro de 2001, a Conrad Editora usou a sua experiência com a Pokémon Club para tentar emplacar uma revista exclusiva da série, a Clube Sakura Card Captors (tudo tinha que ser “clube”, pelo visto), que tinha como foco o público feminino. Além de matérias diversas explorando os personagens e cartas Clow de brinde, havia uma quadrinização dos episódios, como acontecia na “irmã” dos monstrinhos — mas só saíram 9 edições, talvez por baixas vendas, mas talvez porque também não houvesse mais o que explorar (a matéria de capa do último volume é sobre o final da série).
Fora isso, a mesma editora levou às bancas um álbum de figurinhas, revistas de passatempo e pôster. Outro álbum também saiu para as figurinhas da Spin, que lançou uma linha de chicletes embalados pelos personagens.
Em outra editora, então pouco conhecida, Sakura conseguiu brilhar mais. Antes mesmo da estreia na Globo e da revista da Conrad, em maio de 2001, o mangá original começou a ser publicado pela Editora JBC, estreando naquele mercado juntamente com Samurai X. Como de praxe da época, os tomos eram a metade de um volume japonês, o que ficou apelidado pelo público como “formato meio-tanko”. A tradução adaptada também seguia alguns termos usados na dublagem e Shaoran inclusive foi cravado como “Shoran” mesmo, do jeito que se falava na TV. O produto deu certo e rendeu 10 anos depois uma republicação, dessa vez seguindo a numeração japonesa, com um acabamento melhor, mas uma escolha bem “equivocada” para o logo — com uma fonte que lembrava a abominada, por 37 a cada 10 designers, Comic Sans. Essa edição também ganhou uma reimpressão em 2021, seguindo a demanda de uma sequência que falaremos logo, logo.
Apesar de ser um sucesso de público, com reprises a rodo (além do Cartoon, ainda houve mais exibições pelo Boomerang entre 2006 e 2009), encantando crianças e marmanjos, Sakura Card Captors não fez o esperado no sentido do licenciamento. O segundo filme ainda ganhou um lançamento em DVD pelo Studio Gabia (falamos dele em outra matéria), que teve outras replicações, também em VHS, mas que aparentemente não vendeu muito, voltando a alimentar aquele sentimento do mercado da época de que animê de garota mágica não dava certo comercialmente no Brasil.
Os motivos a gente só consegue especular, mas sucessos que vieram um pouco depois, como o de Clube das Winx e WITCH, nos fazem questionar se só não foi uma falta de como saber trabalhar com os produtos semelhantes, mas de origem nipônica.
Retorno impensável: o meteoro Loading
Em 2020, em meio às incertezas do mundo frente à pandemia do novo coronavírus, Sakura era só uma lembrança nostálgica. Mesmo com a animação de Clear Card (sequência da série) em 2018, uma reexibição da série antiga no Brasil, com sua dublagem original, e ainda mais em TV aberta, era inimaginável. Aí veio a Loading.
Assumindo o sinal da antiga MTV Brasil, a Loading surgiu na promessa de ser uma iniciativa focada no público jovem, com a programação toda voltada à cultura pop — incluindo aí os desenhos japoneses. Qual não foi a surpresa quando Cardcaptor Sakura (assim, com o título original) foi anunciado em novembro de 2020 para a programação de estreia do canal, ocorrida em 7 de dezembro do mesmo ano.
Já no dia 3 de dezembro tivemos uma “pré-estreia”, onde pudemos conferir como estava a série sob um novo comando. Com a Cloverway encerrando as atividades, agora o animê era distribuído pela Artworks Entertainment e sua recente representação brasileira, que adquiriu a dublagem original e trouxe mais algumas surpresas. A imagem agora era em HD e enfim os temas de abertura e encerramento não adaptados anteriormente ganharam sua versão em português, distribuídas nas vozes de Livia Dabarian, Larissa Tassi (sim, aquela mesma dos Cavaleiros!) e Bruna Higs.
Ivo Roberto foi chamado novamente para reprisar o papel de Kero, dublando as “sessões” do personagem que compõem a 1ª temporada ao fim de cada episódio. Alguns desses momentos chegaram a ser exibidos na época do Cartoon, geralmente em intervalos comerciais, mas por algum motivo não foram recuperados pela Artworks. Houve também uma nova legendagem para os títulos dos episódios, sendo que a narração deles foi removida.
Sakura começou integrando a programação das tardes da Loading, com bastante inconstância de horário (como boa parte da grade, por sinal), e depois também ganhou exibição pela manhã. Foi exibida por completo mais de uma vez, aliás, várias vezes.
Acontece que a emissora fechou as portas de forma totalmente aleatória em maio de 2021, pegando de surpresa todo o seu quadro de funcionários. Tendo que continuar com o sinal no ar até novembro, restou à Loading viver de reprises de animês que ainda estavam em contrato, o que era o caso de nossa caçadora de cartas. E dá-lhe reprise em loop, ao ponto de, em seus últimos momentos, só ter Sakura, Lost Canvas e Black Cover o dia inteiro na programação diária do canal.
Apesar do fim tragicômico de quem a exibiu, a nova passagem de Sakura foi bem-vinda, de forma a completar lacunas, matar a saudade e apresentar à uma nova geração que ainda depende da TV aberta para o acesso de diversos conteúdos.
Sakura continua em Clear Card
Lá em 2003, três anos após o fim de Cardcaptor Sakura, a saudade já batia em solo japonês. O Clamp então lançou um novo mangá chamado Tsubasa -RESERVoir CHRoNiCLE-, que trazia como protagonista ninguém menos que… Sakura! Só que mais velha (adolescente) e vivendo em um mundo que pode ser resumido como “a salada de frutas do universo Clamp”. Explicamos: Tsubasa não possui qualquer ligação com a série que você conhece. As moças apenas criaram um roteiro cujos protagonistas e personagens secundários são rostos familiares para os fãs de seus trabalhos.
De toda forma, qualquer um que gosta de Sakura simpatiza logo de cara com Tsubasa Chronicle por ver o casal Sakura e Shaoran vivendo uma fantástica aventura, que rendeu um animê bem legalzinho de 52 episódios entre 2005 e 2006. A animação ainda é inédita no Brasil, mas o mangá foi todo publicado pela JBC entre 2006 e 2011, com 56 volumes (dobrando a numeração japonesa, já que foi publicado em “meio-tanko”).
Mas e a Sakura de verdade? Pra atender de vez ao anseio dos fãs (e dar uma reanimada nos cofres), finalmente em 2016, aproveitando o aniversário de 20 anos da obra original, o Clamp decidiu por ir em frente com uma sequência subintitulada de Clear Card Arc. Agora os novos mistérios que rondam a garota giram em torno do fato de que suas cartas ficaram transparentes do nada.
Atualmente (2022), os novos capítulos são publicados simultaneamente no Brasil, de forma digital, pela JBC (que também traz os encadernados impressos) e disponibilizada com a mesma tradução pelo canal no YouTube do próprio Clamp. O novo interesse na obra também rendeu uma adaptação animada pelo mesmo estúdio Madhouse e pelo mesmo diretor Morio Asaka (dentre outros nomes da equipe original), com 22 episódios produzidos em 2018 e disponíveis, legendados, pela Crunchyroll. Como o mangá ainda está em publicação, a série foi encerrada sem um final conclusivo e pode ser que em algum momento futuro a produção continue.
Até hoje os fãs brasileiros aguardam ter essa nova leva de episódios dublada com o mesmo elenco das vozes que ajudaram a tornar a primeira série o sucesso que foi em nosso país. Tudo bem que os dubladores teriam de se esforçar bastante para repetir um timbre similar ao de décadas atrás, mas se milagres como o do retorno à TV se tornaram possíveis (com direito à adaptação de músicas inéditas!) não custa sonhar, né?
Dessa forma, vamos deixar o assunto Clear Card para um outro dia — ou não?
Ficha técnica
- JAPÃO
Título: Cardcaptor Sakura
Emissora original: NHK BS2
Exibição original: 7 de abril de 1998 a 21 de março de 2000
Horário original: terças, das 18h às 18h25
Total de episódios: 70 para a TV, 3 curtas especiais para home-video e 2 filmes para o cinema
Estúdio: Madhouse
Criação: Clamp
Roteiro: Nanase Ohkawa (ep. 1~3, 6, 8~9, 11, 13~14, 16~18, 20, 23~24, 27, 31, 34~37, 39~70), Jiro Kaneko (ep. 4, 7, 12, 15, 19, 21, 24 e 30), Hiroshi Ishii (ep. 5, 10, 13 e 22), Tomoko Ogawa (ep. 25, 28~29 e 33) e Tomoyasu Okubo (ep. 26, 32 e 38)
Direção geral: Morio Asaka
Designer de personagens: Kumiko Takahashi
Trilha sonora: Takayuki Negishi
Elenco de vozes: Sakura Tange (Sakura), Aya Hisakawa (Kero), Masaya Onosaka (Kerberos na forma original), Junko Iwao (Tomoyo e Carta Canção), Motoko Kumai (Shaoran), Tomokazu Seki (Touya), Megumi Ogata (Yukito/Yue), Hideyuki Tanaka (Fujitaka), Miwa Matsumoto (Chiharu), Emi Motoi (Naoko), Tomoko Kawakami (Rika), Issei Miyazaki (Yamazaki), Nozomu Sasaki (Eriol e figurações), Emi Shinohara (Mizuki), Ryoka Yuzuki (Nakuru/Ruby Moon), Yumi Touma (Spinel Sun na forma menor), Katsuyuki Konishi (Spinel Sun na forma original e professor Terada na 3ª temporada), Miki Itou (Sonomi), Tohru Furusawa (professor Terada), Kei Hayami (professora Makiko Midori), Tomo Saeki (Yukie Kimura), Yuuko Minaguchi (Nadeshiko), Motomu Kiyokawa (Wei), Kazuo Hayashi (Mago Clow), Michiko Neya (professora Tsujitani), Yuka Imai (Rei Tachibana), Osamu Saka (Masaki Amamiya), Rei Sakuma (Carta da Luz e da Escuridão), Kotono Mitsuishi (Maki Matsumoto), Kyoko Hikami (Yoko)
Temas de abertura: Gumi (1º – Catch You Catch Me), ANZA (2º – Tobira o Akete), Maaya Sakamoto (3º – Platinum)
Temas de encerramento: Koumi Hirose (1º – Groovy!), Chihiro (2º – Honey), Megumi Kojima (3º – Fruits Candy)
- BRASIL
Título no Brasil: Sakura Card Captors (2000-2010) e Cardcaptor Sakura (2020)
Distribuição: Cloverway/Imagine Action Dálicença (2000) e Artworks Entertainment (2020)
Emissoras no Brasil: Cartoon Network, Rede Globo, Boomerang e Loading
Elenco de dublagem: Daniella Piquet (Sakura), Ivo Roberto (Kero), Fernanda Bullara (Tomoyo), Fábio Lucindo (Shaoran), Vagner Fangundes (Touya), Rodrigo Andreatto (Yukito/Yue), Francisco Bretas (Fujitaka), Márcia Regina (Chiharu), Melissa Garcia (Naoko), Priscila Concépcion (Rika), Rafael Barioni (Yamazaki), Thiago Longo (Eriol e figurações), Adriana Pissardini (Mizuki), Raquel Marinho (Nakuru/Ruby Moon e Carta da Escuridão), João Batista (Spinel Sun), Denise Reis (Sonomi, professora Makiko Midori, Maki Matsumoto e figurações), Luiz Laffey (professor Terada e figurações), Denise Simonetto (Nadeshiko, professora Yukie Kimura — 1ª voz, Yoko, carta Fogo e figurações), Eleu Salvador (Wei), Luiz Antônio Lobue (Mago Clow), Elisa Villon (professora Yukie Kimura — 2ª voz, e figurações), Gabriel Noya (figurações), Úrsula Bezerra (Akane e figurações), Rita Almeida (professora Tsujitani — 1ª voz e figurações), Luciana Baroli (Rei Tachibana e figurações), Rosa Baroli (professora Tsujitani — 2ª voz e figurações), Silvio Giraldi (figurações), João Angelo (Masaki Amamiya e figurações), Isabel de Sá (Carta da Luz), Sérgio Rufino (figuração), Adna Cruz (figurações), Rogério Vieira (figuração), Paulo Porto (figurações), Flavia Narciso (figurações), Sandra Mara Azevedo (moça do tempo), Mônica Toniolo (Tomoyo cantando no 5º episódio), Nísia Moraes (canções na versão exibida pela Globo), Gilberto Rocha (locução)
Temas de abertura: Soraya Orenga (1º – Catch You Catch Me, versão do estúdio BKS), Livia Dabarian (2º – Tobira o Akete, versão do estúdio IST), Larissa Tassi (3º – Platinum, versão do estúdio IST)
Temas de encerramento: Soraya Orenga (1º – Groovy!, versão do estúdio BKS), Livia Dabarian (2º – Honey, versão do estúdio IST), Bruna Higs (3º – Fruits Candy, versão do estúdio IST)
Direção de dublagem: Denise Simonetto e Patrícia Scalvi (2000, BKS) | William Viana (materiais adicionais em 2020)
Direção musical: Nil Bernardes (2000, BKS) | Rodrigo Rossi (2020, IST)
Versão brasileira: BKS – São Paulo | Imagine Sound Thinking (materiais adicionais em 2020)
Guia de episódios
Acesse o guia completo dos 70 episódios de Cardcaptor Sakura clicando aqui.
Sakura Card Captors: A Carta Selada
Acesse a matéria do 2º filme de Cardcaptor Sakura clicando aqui.
Fontes consultadas: Livro CLAMP North Side, livro Cardcaptor Sakura Memorial Book (tradução não-oficial do blog Chibi Yuuto’s), revista Henshin nº9 e nº10, revista Anime News nº 01 e acervo do site JBox